Começam “de baixo” para chegar a gestores de hotéis: “Nunca se esquecem de que estão a servir as pessoas”
É das escolas de hotelaria mais exclusivas do mundo e os alunos pagam quase 270 mil euros pelo curso. O que a distingue? O ensino prático: os alunos servem às mesas antes de gerirem hotéis.
O burburinho ouve-se até do outro lado da porta da entrada. No interior, uma confusão de sotaques, risos e música. O denominador comum? A roupa formal, uma profusão de calças beges e blazers. Estamos no interior do campus da Les Roches de Cans-Montana, Suíça, uma das melhores e mais exclusivas escolas de hotelaria do mundo – e também uma das mais caras –, onde os alunos esperam vir a fazer carreira como gestores, mas passam o primeiro ano a servir às mesas e a aprender a fazer camas. É a filosofia suíça no ensino de hotelaria.
Estamos no berço do turismo de luxo, desde o século XIX que a Suíça é um destino procurado pelos aristocratas britânicos. E, se tivéssemos entrado de olhos tapados no átrio desta escola, não perceberíamos imediatamente que estávamos numa instituição de ensino superior. À nossa frente abre-se um espaço amplo. De um lado, uma recepção que se estende até ao bar, num balcão contínuo. Há sofás confortáveis – castanhos, a complementar a madeira das paredes e do chão – e uma lareira convidativa. As janelas ocupam paredes inteiras – seria pecado não aproveitar esta vista para os Alpes – e o piano de cauda dá-lhe o toque final. Onde é o nosso quarto?
Carlos Díez de la Lastra, director executivo da Les Roches, fala no rescaldo de uma renovação que durou dois anos e que dotou esta escola septuagenária de um lobby novo e de outros espaços, como um ginásio e sala de massagens: “Se tivesse de a resumir a alguém que nunca aqui entrou, diria que é uma combinação entre academia militar, resort de luxo e universidade.”
“Se vieres às 8h, parece uma academia militar. Se vieres num momento de descanso dos estudantes parece um resort de luxo de montanha. Se vieres à hora das aulas, parece uma universidade.”
A parte do resort entendemos. A da universidade também, especialmente quando olhamos para os detalhes, como o palco e púlpito com a insígnia de Les Roches no átrio. A parte da academia militar é que já é menos clara.
É Guilherme Catarino, aluno do primeiro ano da licenciatura em gestão hoteleira, que desfaz as dúvidas: “O meu dia começa por volta das 8h45, aqui no lobby, onde temos o roll call, onde toda a turma do primeiro ano se junta aqui em círculo, com a roupa em condições. Tem de estar tudo limpo, os sapatos, as camisas passadas, os fatos plissados, a barba com cada pêlo no lugar e é feito um controlo durante todo o semestre.”
Fala ao P3 no átrio da universidade, onde só está a estudar há apenas quatro semanas, mas já está ambientado – fala com toda a propriedade.
Guilherme não é alheio a este nível de brio. Depois de ter completado o ensino secundário no Colégio Planalto, em Lisboa, esteve um semestre a tirar Gestão e Economia na Áustria, antes de “uma breve experiência militar” no Exército alemão.
Se alguém aparecer sem estar apresentável, pode perder pontos, e isso pode equivaler a “faltas que podemos ter de compensar, ou, se forem muitas, podemos até perder o semestre”. “Tudo isto acaba por nos ensinar não só em termos académicos e práticos, mas também em termos de pontualidade: temos de estar a horas, bem vestidos, apresentáveis.”
É verdade que não há um uniforme, mas não é preciso, quando os alunos aprendem esta lição tão bem. Vemo-lo a acontecer à nossa frente quando Giovanni Odaglia, o director deste campus, nos está a mostrar o edifício principal – o maior dos 19 que o compõem, espalhados pela montanha e contíguos à vizinha localidade de Crans-Montana.
Há espelhos à entrada das salas de aulas e espaços comuns. Não há aluno que não esteja de fato completo: blazer, calças, sapatos fechados. Os homens de gravata; as mulheres de salto e cabelo apanhado (ou no mínimo arranjado).
Giovanni mostra o espaço, mas não perde nenhum aluno de vista. Há sempre alguém que tenta escapar. Uma rapariga com uma camisola de malha cinzenta é advertida. Um rapaz com duas argolas nas orelhas, também. O director do campus fá-lo de forma discreta, mas admite, entre risos, que é “o homem mais odiado desta escola”.
Carlos de La Lastra, o CEO, orgulha-se: já não é a primeira vez que lhe dizem que os seus alunos se distinguem de todos os outros por estarem verdadeiramente confortáveis de fato e gravata. Diz que nem se apercebem de que a estão a usar e isso “prepara-os para o mundo real”, justifica.
Em teoria, estas regras também servem outro propósito: o de não se distinguir a origem destes alunos, para que estejam preparados para trabalhar em qualquer local do mundo. O que, numa escola com alunos de 97 nacionalidades (“101 a contar com o staff”, acrescenta Giovanni prontamente), não é um objectivo pouco ambicioso. Mas o diabo está nos detalhes – para quem os souber ver. Os relógios. As jóias. As malas de marca. Tudo o que os distingue.
“Tens de começar em baixo para conseguir ir para cima aos poucos”
Sentados no sofá castanho ao lado de Guilherme Catarino, Lara Figueiredo e Luís Gonçalves, também eles com 19 anos, fazem um resumo do que se pode esperar do segundo ano de curso.
“Quando vim para aqui, não sabia bem o que queria fazer, e hotelaria é um ramo que abrange muita coisa. Dá-te abertura para fazeres o que quiseres quando saíres”, afirma Lara, natural de Cascais. Estudou no Colégio St. Dominic's e acabou o secundário no Brasil. Admite que os seus planos passavam pela Arquitectura, “só que era muita Matemática, muito estudo”, e acabou por se decidir pela hotelaria. “Não é tanto estudar, estar a fazer TPC, é muito prático”, justifica.
O primeiro ano, recorda, é o mais prático de todos. Os novos alunos são divididos por equipas, que vão assegurar quase todos os serviços da escola: o serviço de buffet da cantina, a cozinha, o café ou até o restaurante de fine dinning da escola, aberto a quem o quiser visitar, chamado Substance. “Tudo isto é feito por alunos”, sublinha, enquanto um deles nos vem trazer uma travessa de doces – macarons, bombons de chocolate, fruta.
Foi precisamente isso que vimos enquanto conhecíamos a escola. Na cozinha, dividida entre sobremesas, parte fria e parte quente, os estudantes atarefavam-se com o aproximar da hora de almoço, sob o olhar atento de um chef, visivelmente mais velho. Na copa, limpavam os pratos dos colegas ao lado de uma equipa permanente.
Trabalham por turnos, entre cinco e oito horas (ou mais) por dia. E todas as semanas mudam de funções.
Além da parte de comida e bebida, também têm simulações, que decorrem no chamado Petit Roche, o hotel “a brincar” da escola, onde aprendem todas as tarefas de housekeeping — isto é, a limpeza de quartos, a lavandaria, os serviços de camareiros e o da governanta — e a recepção.
Têm ainda workshops práticos, coisas como “corte de legumes, como fazer uma receita, sobre pastelaria, vinhos”. “Hoje tive um de chá chinês, onde estivemos a experimentar durante uma hora e meia e a falar sobre os diferentes tipos de chá”, descreve Guilherme.
Tudo pelo preço de cerca de 40 mil euros por cada semestre que passam em Crans-Montana — contas feitas com propinas e alojamento.
“Eu não tinha experiência de trabalho antes de chegar aqui, então todos os turnos que fiz foram coisas diferentes”, explica Lara. “Tens de começar em baixo para conseguir ir para cima aos poucos. No começo, eles atiram-te... Estão a ensinar-te exactamente o que é que tu tens de fazer. Para depois, quando estiveres na parte teórica, já saberes mais ou menos a base do que é que se faz num bar, o que é que se faz num café. Nunca teria tido um trabalho de housekeeping se não fosse esta experiência.”
Mas vê as vantagens para o futuro: “Como consegues dizer a alguém para fazer uma coisa se tu não sabes o que está a fazer? Como é que vais julgar o trabalho de uma pessoa se não sabes o quão difícil é? Se já estiveste no lugar deles, sabes quanto tempo demora, o que é preciso.”
Uma experiência para “ganhar disciplina”
A única queixa de Lara é que, no segundo ano, a componente prática é muito menor – os dias são ocupados com cadeiras como Economia, Contabilidade, Recursos Humanos, Comunicação e outras com nomes menos óbvios como Diversidade Humana.
Na bagagem, traz já a experiência do primeiro de três estágios obrigatórios para terminar o curso. Fê-lo em Hong Kong, numa cadeia de restaurantes – três meses num restaurante de fine dinning italiano; três meses num restaurante libanês “bem mais informal”. “Puseram-me no bar e no café porque viram que eu já tinha experiência aqui na escola”, afirma. As partes menos boas? “Tínhamos de polir os pratos e os talheres e aconteceram algumas coisas mais chatas, mas que fazem parte.”
No fundo, “foi uma boa experiência para criar disciplina” de que não se “arrepende”.
Ao lado, Luís Gonçalves está ansioso por falar. De fato perfeitamente passado e com tranqueta na gravata, é o que se mostra mais à vontade do grupo. Afinal, está entre amigos – ele e Guilherme já se conheciam desde o tempo em que ambos estudaram no Colégio Planalto.
“Fiz estágio no Dubai, no resort do Burj Al Arab, num hotel chamado Mina Salam. Fiz concierge durante seis meses seguidos, com tudo incluído, transporte para o trabalho, refeições e acomodação e ainda 1500 dirhams, que são 400 euros mais ou menos, de mesada por mês”, descreve, sublinhando que em Portugal dificilmente teria condições como estas.
“A partir da segunda semana ganhei confiança. Fazia os turnos completos sozinho na mesa do concierge e assistia os hóspedes em tudo o que era reservas, pedidos especiais, problemas...”
Foi desses problemas que tirou as histórias mais engraçadas: “Tive uma senhora russa uma vez a ligar-me e a dizer-me que tinha um crocodilo, um ‘aligator’, um ‘lacoste’ no quarto. Na altura, chamei o rapaz que corria com as malas, e ele foi lá verificar. Entrou. Era uma lagartixa, uma osga. E tivemos algumas situações também interessantes, de pessoas a mudar de casa que queriam que nós tratássemos das mudanças. Portanto, era um ‘tapa muitos buracos’.”
Veio para aqui porque desde pequeno que sabia que queria “alguma coisa relacionada com cozinha”, mas acabou na gestão hoteleira. “Podia ter ficado em Portugal, mas o objectivo final é sair. Vejo o meu percurso em aberto”, afirma.
Bem para lá dos hotéis
O gabinete de Stephanie Ruiz é um rodopio o dia inteiro. Há alunos com dúvidas sobre empresas para estágios, outros que querem dicas para entrevistas de emprego ou até quem queira que lhe avaliem o LinkedIn.
“Ajudamo-los para poderem ter exactamente o tipo de trabalho que procuram”, afirma.
E, se há 15 anos, a maioria dos estudantes acabaria por trabalhar num hotel ou num restaurante, hoje em dia as opções são muito mais variadas: “Aviação privada, imobiliário, eventos e desporto são muito populares neste momento”, diz, acrescentando com orgulho que teve uma equipa de estudantes na preparação dos Jogos Olímpicos deste Verão.
“As pessoas com um diploma em hotelaria acabam a trabalhar em todo o tipo de indústrias. Eu, por exemplo, já trabalhei na Cartier e na área de petróleo e gás.”
Agora, voltou à alma mater para dirigir o gabinete de orientação profissional. “Fazemos muitas entrevistas, desenvolvemos as capacidades de networking, até com coisas simples, como apertar a mão”, descreve. “Eles vêm de culturas diferentes, com religiões diferentes. O mais comum é terem mais do que um passaporte”, justifica.
Até as fotos que usam nos perfis do LinkedIn e no currículo são tiradas na escola no primeiro ano, seguindo todos os preceitos Les Roches, e todos os currículos são previamente aprovados pela equipa do Career Services.
Quase todos os alunos vivem no campus – ao puro estilo colégio interno – e só os mais velhos, finalistas, podem escolher morar noutro sítio. Não estão presos dentro da escola (podem e saem todos os fins-de-semana, e a escola até lhes dá a possibilidade de alugarem BMW eléctricos com esse intuito), mas ajuda a explicar que todos se conheçam e que os funcionários da escola também saibam, com algum detalhe, o que se passa nas suas vidas.
O acompanhamento começa logo desde cedo porque o primeiro estágio decorre no segundo semestre. A experiência de trabalho que levam da escola é precisamente um dos factores que distinguem estes estudantes quando chegam ao “mundo real”: “Sabem o significa trabalhar em todos os departamentos, os horários, os colegas, o trabalho de equipa, receber ordens e conseguir segui-las, como comunicar de forma apropriada”, descreve Ruiz.
E as empresas procuram-nos. Sentem isso não só nos Career Days – um megaevento obrigatório para os alunos onde as empresas vão recrutar —, mas também no percurso que fazem quando saem da escola. “Quem quer ter um emprego tem entre três e cinco opções no momento em que acaba o curso, se tiverem começado a candidatar-se antes do fim, que é o que devem fazer”, afirma a directora do gabinete de orientação profissional.
“Neste momento, nesta indústria, há mais trabalhos do que profissionais. Vivem numa era perfeita em que, se quiserem um trabalho, vão tê-lo.”
O que faz o director de um hotel? “Serve as pessoas”
Ainda longe do fim do curso, nenhum dos alunos portugueses com quem o P3 falou tinha um plano traçado sobre o que querem fazer para lá de Crans-Montana. Lara diz que talvez abra “um negócio”; Luís diz que vai ver do que gosta “ao longo do curso”. Apesar de ser o que menos experiência tem (ou talvez por causa disso), Guilherme é o que arrisca um plano mais concreto: “Estou inclinado para guest relations ou eventos.”
Todos eles estão cientes dos custos de estudar nesta escola – “cerca de 250 mil francos suíços no total”, dizem-nos, o equivalente a quase 270 mil euros –, mas estão confiantes que compensa. “Nos primeiros dez anos depois do curso, conseguimos rapidamente cobrir esse investimento”, diz Guilherme. Quem fez as contas arrisca um salário anual esperado no primeiro emprego no fim do curso: “Cerca de 90 mil francos.”
“E oferecem um acompanhamento muito próximo, independentemente de terem 200 alunos num ano ou mais”, acrescenta Luís.
Para o CEO da escola, é parte do objectivo. O que distingue Les Roches, para La Lastra, é a “cultura de realmente cuidar das pessoas”. “Acreditamos que uma pessoa que vem de uma família com muitos recursos e que tem uma certa posição muitas vezes não compreende o que vai fazer. Se for um director de um hotel de cinco estrelas, o que ele vai fazer é servir as pessoas.”
Na escola, “o que temos de exigência temos de cuidado”, alega La Lastra. Guilherme di-lo de forma diferente: “É como estar numa escola e numa família ao mesmo tempo.”
O P3 viajou a convite da Les Roches Crans-Montana.