Nestas aulas de português para imigrantes, “o ensino é necessariamente político”
As aulas são gratuitas e abertas a qualquer pessoa, quer a sua situação no país esteja regularizada ou não. A ideia é criar um espaço “livre” que contribua para desenvolver “uma consciência política”.
As mesas dispostas em semicírculo, a atenção inabalável das cerca de 20 pessoas nelas sentadas e o quadro branco no centro da sala em tudo indicam que se trata de uma aula como outra qualquer. Desta vez, os temas da lição foram as profissões e o trabalho. Cozinheiro, soldador, ilustradora, caixa num minimercado ou reparador de telemóveis — uma a uma, vão-se apresentando e traduzindo para português as ocupações dos alunos presentes.
“Landlord?”, pergunta, entre risos, um dos participantes. “Diz-se ‘senhorio’, mas não é uma profissão: o senhorio não produz nada!”, responde uma das instrutoras. Nestas aulas de português para imigrantes, promovidas pela Habitação Hoje (HH), “o ensino é necessariamente político”, explica Alexandre, um dos militantes da organização que se dedica à defesa do direito à habitação, e que se identifica como um “sindicato de inquilinos”.
Uma vez por semana, durante duas horas, pessoas vindas “sobretudo do Norte de África e do Sudeste asiático”, assim como da Argentina, Dinamarca, Grécia, Rússia ou ainda alguns estudantes de Erasmus, reúnem-se no Porto para aprender a falar português.
“Temos naturalmente muitas oportunidades para contactar com o mercado de arrendamento e contactar com inquilinos. Por isso, também temos muitas oportunidades para contactar com a comunidade imigrante em geral, que é, cada vez mais, uma camada muito significativa do inquilinato e da classe trabalhadora. Parte dessa comunidade imigrante não fala português e no contacto com as pessoas é bastante evidente que essa barreira linguística existe”, explica Alexandre.
O militante salienta a importância de saber falar e conseguir compreender português para lidar com processos burocráticos no mercado de trabalho, de arrendamento ou até mesmo durante o próprio processo de regularização no país. “A capacidade de comunicar é algo que determina, em parte, a experiência de uma pessoa que é imigrante em Portugal”, acrescenta.
Hafiz Muddassir Alam ainda só participou em três aulas, mas assegura que “para aprender uma língua é preciso estar entre as pessoas que a falam, e estas aulas [deram-lhe] uma noção da língua, pelo menos para começar”. O paquistanês de 40 anos está em Portugal desde Abril, após uma visita ao país o ter convencido a ficar permanentemente. É formado em Informática e era especialista em governança e gestão de risco no seu país de origem, diz. Ainda não conseguiu encontrar emprego nessa área desde que imigrou e, por enquanto, está a trabalhar com reparações electrotécnicas.
“Moro com colegas que são, na sua maioria, da mesma região que eu, portanto dentro de casa não tenho tanto esse problema [da barreira linguística]. Por outro lado, na procura de trabalho, é-me pedido que saiba a língua, ou mesmo para conversar com alguém na rua, por isso tornou-se uma necessidade conseguir pelo menos comunicar [em português]”, diz Hafiz.
As aulas realizam-se desde Fevereiro deste ano, são gratuitas e abertas a toda a comunidade. Para além da pausa de um mês efectuada em Agosto e da que está prevista para Dezembro, os militantes da HH responsáveis pelo curso estão a considerar uma interrupção também na altura do Ramadão, já que uma parte substancial das pessoas que frequenta as aulas é muçulmana. Alexandre, que é uma das cinco pessoas envolvidas no projecto, dá conta de “uma sala cada vez mais composta e também mais diversa”.
Como é usual, os verbos irregulares, o som nasalado das palavras com til ou a aparente aleatoriedade da atribuição de género aos nomes são algumas das dificuldades mais comuns para quem tenta aprender português. Pequenos detalhes e dúvidas são colocados a descoberto nestas aulas, mas quem as lecciona, mesmo sendo falante nativo, nem sempre lhes está imune: as duas militantes da HH desta vez encarregues de leccionar a aula vão trocando olhares e pequenas questões entre si — por exemplo, para soletrar “cabeleireiro” ou explicar a diferença entre “motorista” e “condutor”.
Entreajudando-se (e relembrando-se mutuamente para manterem uma caligrafia especialmente cuidada e perceptível), vão conduzindo a lição, sem nunca assumirem o papel de professoras: a ideia, tratando-se de um espaço “livre”, é “ter uma abordagem de ensino que não se baseia necessariamente na instrução, mas que, subvertendo essa relação professor-aluno, crie um espaço em que seja possível, para além da aprendizagem da língua, o desenvolvimento de uma consciência política”, esclarecem os organizadores, acrescentando que se apoiam no método do pedagogo brasileiro Paulo Freire.
Quando cá chegou, Hamid Ouhssini “só sabia dizer ‘bom dia’”, mas agora já foi capaz de conversar em português. Depois de uma passagem por Espanha, o marroquino de 28 anos visitou Portugal e, entretanto, já lá vão sete meses desde que aqui se decidiu fixar. Era chefe de cozinha num hotel em Marrocos e agora trabalha na construção civil.
Hamid frequenta não só as aulas semanais da HH, mas também o programa Português Língua de Acolhimento (PLA), do Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP). Este programa, criado em 2009, é exclusivo para “cidadãos imigrantes (…) com situação regularizada em Portugal”, critério que a HH não exige para a participação nas suas aulas.
Alegando motivos de segurança, a localização exacta dos encontros no centro do Porto só é disponibilizada a quem pretende participar. Alexandre garante: “Não seria a primeira vez que militantes de extrema-direita apareciam para nos intimidar.”
Alexandre clarifica que “estas preocupações têm que ver não só com o que se tem passado no Porto nos últimos meses, mas, de um modo geral, com o período político em que estamos”, diz. “Estamos a observar de uma forma assustadora — ainda que não surpreendente — a expressão cada vez mais frequente do racismo e da xenofobia.”
Texto editado por Renata Monteiro