Língua azul: que doença é esta que tem dizimado rebanhos no Alentejo?
A doença afecta principalmente as ovelhas e os borregos e o número de animais mortos tem chegado aos milhares por dia. Agricultores estimam prejuízos muito elevados com a língua azul.
A febre catarral ovina, conhecida como doença da língua azul, tem vindo a afectar vários rebanhos em Portugal, atingindo principalmente as ovelhas e borregos. O número de animais mortos aumentou exponencialmente – como “nunca se viu” em anos anteriores – e os criadores de gado falam em prejuízos na ordem dos milhões de euros. Mas, afinal, que doença é esta? Estão disponíveis vacinas? Há algum risco para os humanos? O que justifica o actual surto em Portugal? O PÚBLICO reuniu algumas perguntas (e respostas).
O que é a doença da língua azul?
A língua azul é uma doença causada por um arbovírus da família Reoviridae, género Orbivirus, sendo habitualmente transmitida por mosquitos do género Culicoides (como a espécie Culicoides imicola, a Culicoides obsoletus e a Culicoides pulicaris), segundo informação disponibilizada pela Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV).
Esta é uma “doença viral, infecciosa não contagiosa” e existem 24 serótipos antigénicos do vírus que “não desenvolvem imunidade cruzada entre si”, com a virulência a variar com os serótipos do vírus, destaca a DGAV.
Nos últimos anos, foram identificados na Europa vários serótipos de língua azul, incluindo em Portugal continental.
Que serótipo do vírus provocou o surto actual no país?
Dados disponibilizados ao PÚBLICO pelo Ministério da Agricultura e Pescas indicam que, em Portugal continental, já foram detectados os serótipos 1, 3 e 4 do vírus que causa a doença da língua azul. O serótipo 4 surgiu pela primeira vez em 2004 e foi novamente detectado em 2013, com os surtos mais recentes confirmados em Dezembro de 2023. O serótipo 1 foi identificado em 2007, com surtos a ocorrem até 2021 (não havendo casos recentes).
Já o serótipo 3 foi detectado pela primeira vez no país a 13 de Setembro deste ano, no distrito de Évora. Desde então, já se alastrou e é, aliás, o responsável pelo actual surto em território português.
O presidente da Associação dos Jovens Agricultores do Sul (AJASUL), Diogo Vasconcelos, explica ao PÚBLICO que os serótipos 1 e 4 já estavam disseminados no território nacional, com os rebanhos a serem vacinados anualmente contra esses serótipos. No entanto, os agricultores não estavam “preparados” para o aparecimento do serótipo 3.
“Não tínhamos vacina nem houve prevenção. Esta estirpe apareceu em Setembro no Alentejo e tem-se disseminado com uma velocidade estonteante porque o vector é um mosquito. O mosquito encontrou condições ideais para a propagação e foi como um fogo que entrou pelo Alentejo adentro”, lamenta Diogo Vasconcelos.
Portanto, há vacinas para a língua azul?
Sim, existem vacinas preventivas. O presidente da AJASUL lamenta que o Governo português não comparticipe a vacina para o serótipo 3 e dá o exemplo de Espanha: “Aqui ao lado, em Espanha, ainda a doença não estava declarada e o Governo já estava a pagar a vacina para os animais serem vacinados.”
O Edital nº 82 tornado público pela DGAV destaca que a vacinação contra os serótipos 1 e 4 do vírus da língua azul é obrigatória para o “efectivo ovino reprodutor adulto” e para “os jovens destinados à reprodução”, bem como para o efectivo bovino. A vacinação foi “adoptada como estratégia nacional em Julho de 2023, com o objectivo de se atingir uma elevada cobertura do efectivo nacional continental, promovendo a imunidade populacional contra estes serótipos circulantes na altura”.
Quanto ao serótipo 3, o Edital nº 82 destaca que foi “autorizada a vacinação” do efectivo bovino e ovino, “de acordo com as indicações fornecidas pelo fabricante da vacina e mediante notificação da DGAV”.
Já o Ministério da Agricultura e Pescas destaca ao PÚBLICO que “os animais não estão imunizados contra este serótipo [3], uma vez que se trata da primeira vez que este vírus circula no território nacional, pelo que a população é altamente susceptível”. “Através da vacinação dos animais será possível aumentar a sua imunidade.”
Quantos animais estão a morrer por dia em Portugal?
Segundo Diogo Vasconcelos, são “muitos milhares de animais que morrem por dia”. E há um factor a ter em conta: “Não morrem só animais adultos. Estamos a atravessar o período da parição dos rebanhos – a altura do Natal até à Páscoa é a de mais procura de borregos –, portanto, muitas das ovelhas que apanharam a doença abortaram e, nos casos em que não abortam, os borregos nascem prematuros e morrem.”
“A mortalidade nos borregos tem sido enorme”, diz o presidente da AJASUL, que é também criador de ovinos. E dá o seu exemplo: em 200 e poucas ovelhas que já pariram, apenas ficou com cerca de cem borregos. “E falta-me contabilizar os abortos. É uma perda enorme. Já sou agricultor há muitos anos e nunca tinha visto uma coisa destas.”
O Sistema de Recolha de Cadáveres de Animais Mortos na Exploração (SIRCA), gerido pela associação ACOS - Agricultores do Sul, com sede em Beja, confirma que os números de cadáveres recolhidos por dia são na ordem dos milhares.
O presidente da ACOS, Rui Garrido, destacou, em declarações à agência Lusa, que o SIRCA “não tem mãos a medir” com a expansão do vírus. “O nosso pico [de recolha] normalmente é depois de Agosto, quando recolhemos cerca de 400 num dia, que é o que tem acontecido em anos anteriores, mas hoje tivemos mais de 2000 animais para recolher", exemplificou Rui Garrido, acrescentando que este número de cadáveres de animais recolhidos representa “cinco vezes mais do que em igual período do ano passado”.
Segundo dados enviados ao PÚBLICO pelo Ministério da Agricultura e Pescas, desde 13 de Setembro até esta segunda-feira, dia 28 de Outubro, foram contabilizadas em Portugal continental 41 explorações de bovinos afectadas pelo serótipo 3 do vírus (com 102 animais afectados e sem mortalidade) e 238 explorações de ovinos afectadas (com 11.934 animais afectados e 1775 animais mortos). Os distritos com mais explorações de ovinos afectadas são Évora, Beja, Setúbal e Portalegre. As Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira são consideradas zonas não afectadas pelos vírus da língua azul.
A discrepância nos dados do SIRCA e do ministério relativos à morte de animais afectados pela doença da língua azul está, segundo o gabinete do ministro da Agricultura, relacionada com a subnotificação, uma vez que, apesar de a doença ser de notificação obrigatória, o ministério não está a receber notificações regulares e há produtores que não reportam as mortes. Além disso, refere o gabinete, nem todos os cadáveres que são recolhidos são autopsiados.
Quais os sintomas desta doença nos animais?
A doença da língua azul pode provocar febre e inchaço na língua dos animais e úlceras, o que faz com que deixem de comer. Além disso, pode provocar abortos nas ovelhas e dificuldade de mamar nos borregos.
A língua azul também afecta vacas?
Sim, esta doença afecta bovinos, ovinos e caprinos. Segundo Diogo Vasconcelos, o impacto desta doença nas vacas “não é tão grande” – e esse é, aliás, “outro problema” que faz com que “a exportação de animais bovinos e ovinos esteja cancelada”.
Qual o impacto na exportação?
O presidente da AJASUL explica que, “no Alentejo, muitas das explorações são mistas, com ovelhas e vacas”, o que significa que “não só morrem as ovelhas e os borregos, mas os animais também não podem ser exportados”. Além disso, “é mais difícil de vender e os animais têm menos valor.”
Sobre o impacto na exportação, o Ministério da Agricultura e Pescas destaca que “a língua azul está incluída nos critérios sanitários de certificação de animais vivos para outros Estados-membros e para países fora da União Europeia” e que “os certificados são acordados conforme a situação epidemiológica”, acrescentando que “esta doença não afecta a certificação de produtos”.
Quais os prejuízos?
Diogo Vasconcelos não tem dúvida de que os prejuízos rondam os milhões de euros. Mas sublinha que “é impossível contabilizar isso agora porque não temos estrutura para o fazer”. “Temos assistido, nos últimos anos, a um desinvestimento neste sector da sanidade animal e agora paga-se o preço disso. Não é que os serviços não sejam competentes – porque são e estão preparados –, mas são poucos. As associações estão a recolher números, mas não há capacidade instalada para fazer um levantamento sério.”
O presidente da AJASUL calcula que “nos rebanhos afectados – que são a grande maioria – entre 40% a 70% da parição foi perdida”. E conclui: “As contas vão ter de se fazer mais para a frente, mas isto é uma perda enormíssima de rendimentos e de animais.”
De acordo com o que o PÚBLICO apurou, uma ovelha custa, em média, 100 euros em Portugal e pare cerca de três borregos em dois anos (com cada borrego a custar também cerca de 100 euros), sendo bastante fértil entre um ano e sete anos de idade.
Há risco para os humanos?
Não. A língua azul não é transmissível aos humanos. Diogo Vasconcelos garante que “esta doença não tem qualquer espécie de risco para humanos”. “A carne não fica contaminada e os animais que morrem da doença também não são consumidos.”
Como estão os produtores a tentar conter a propagação da doença?
Segundo Diogo Vasconcelos, “cada um tem a sua maneira de actuar”. “Há quem desinfecte os animais para afastar os mosquitos com produtos insecticidas; há quem experimente medidas anti-inflamatórias; há quem tente tratar os animais da melhor maneira possível; e há quem esteja a vacinar pagando do seu bolso.”
Embora a vacina contra o serótipo 3 do vírus já tenha chegado a Portugal, o presidente da AJASUL alerta que “não há vacinas para todos” e que “as doses pedidas não chegam para um terço do efectivo” dos animais. Por outro lado, “há muitos agricultores que estão a optar por não vacinar nesta fase porque já têm a doença instalada e têm medo de piorar o problema”.
A melhor “cura”, diz o criador de ovinos, será o “desaparecimento do vector porque com o frio os mosquitos têm tendência a desaparecer”. Ideal seria também chegarem vacinas “em quantidade a Portugal” para, “quando chegar a Primavera e a doença reaparecer, haver vacina em stock suficiente para se vacinarem os rebanhos todos do país”.
Como pode o Governo apoiar os produtores?
A Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP) apelou, nesta terça-feira, para que o Governo implemente medidas de apoio aos agricultores cujas explorações foram afectadas pela doença da língua azul através de uma carta enviada ao ministro da Agricultura e Pescas.
Luís Mira, secretário-geral da CAP, explica ao PÚBLICO que na carta é solicitado que sejam “implementadas rapidamente medidas de apoio”, entre as quais “a comparticipação da vacinação [contra o serótipo 3] para os produtores que estão a fazê-la”, assim como uma “indemnização pelos animais que morreram e a possibilidade de um cálculo para os prejuízos”, visto que há também abortos de borregos.
A CAP solicita ainda que comecem imediatamente os trabalhos – nomeadamente em termos de preparação de meios e orçamento – para “que no próximo ano isto não se repita”. Entre Março e Abril de 2025, diz Luís Mira, é necessário fazer “uma campanha de desinsectização de grande escala”.
A carta refere ainda a “necessidade da actualização das indemnizações por abate sanitário, que ainda estão estabelecidas em escudos”, bem como a criação de “medidas para as raças autóctones que estão a ser afectadas por esta situação”, explica Luís Mira.
Em resposta ao PÚBLICO, o Ministério da Agricultura e Pescas garante estar “a trabalhar num plano de reforço da prevenção e de apoio às organizações de produtores desde o aparecimento do primeiro caso do serótipo 3 da doença da língua azul com o objectivo de evitar a propagação”. Em linha com o solicitado pela CAP, o Governo diz que “vai investir num plano nacional de desinsectização para prevenir a propagação tanto do vector transmissor como da doença e, em consequência, reduzir a mortalidade”. “Este plano vai permitir evitar a propagação não só do serótipo 3 da doença da língua azul, mas também de outras doenças transmitidas por insectos como, por exemplo, a doença hemorrágica dos bovinos”, garante.
O ministério destaca ainda que a previsão meteorológica para as próximas semanas é de descida da temperatura, o que poderá “contribuir de forma determinante para a diminuição do número de insectos do género Culicoides, o que consequentemente diminuirá o risco de infecção entre animais”. E assegura estar “a trabalhar para apoiar os produtores de ovinos em território nacional”.
De acordo com a Lei da Saúde Animal (Regulamento EU 2016/429), sublinha o Governo, “a língua azul foi classificada como uma doença endémica de categoria C, ficando sujeita a programas de erradicação voluntária, que deixaram de ser financiados pela Comissão Europeia”. No entanto, frisa, “o Estado português apoia o combate à doença através da disponibilização de vacinas”. “Está determinado que a vacina para os serótipos 1 e 4, bem como das análises efectuadas no âmbito do programa de vigilância, são suportadas integralmente pelo Estado português. A aquisição desta vacina é gerida pelos serviços veterinários oficiais [DGAV] e disponibilizada aos veterinários. O custo da administração da vacina é suportado pelos detentores dos animais”, refere.
Após a detecção do serótipo 3 do vírus da língua azul na região do Alentejo, em Setembro, reforça o Governo, “foram impostas restrições à movimentação dos animais”. Já a vacinação dos bovinos e ovinos contra este serótipo “tem carácter voluntário e pode ser aplicada nas áreas afectadas”, tendo a DGAV autorizado “provisoriamente a utilização de vacinas, pelo período de um ano”.
Questionado sobre uma eventual comparticipação da vacina para o serótipo 3, o Ministério da Agricultura e Pescas diz ter aprovado “o reforço da subvenção anual em um milhão de euros para aquisição da vacina” como medida “extraordinária para fazer face à situação de emergência sanitária e de forma a apoiar no imediato as organizações de produtores para a sanidade animal”. E destaca que “os animais afectados não são alvo de abate sanitário, por força da legislação vigente”, ou seja, não há um programa de erradicação obrigatório.
O que poderá explicar o aumento da propagação da língua azul?
Numa tese de mestrado de 2020 intitulada Identificação e comparação de Culicoides, vectores e potenciais vectores da doença da língua azul, capturados perto de animais silvestres e de gado doméstico, refere-se que a doença da língua azul “foi reconhecida e descrita há mais de 230 anos na África do Sul”.
“O vírus da doença da língua azul era transmitido por vectores endémicos de regiões tropicais e temperadas até meados dos anos 90 do século XX. No entanto, nos últimos anos têm ocorrido mudanças drásticas na distribuição mundial destes vectores portadores de vírus, particularmente na Europa desde 1998, onde surgiu na região Sul do continente, muito possivelmente devido à introdução de hospedeiros ou produtos infectados, provenientes de regiões endémicas, ou às alterações climáticas que permitiram a persistência do vírus durante o Inverno e a expansão para norte do principal vector da doença”, destaca-se na tese de mestrado.
O secretário-geral da CAP acrescenta que o surto de língua azul que se verifica actualmente em Portugal continental, nomeadamente no Baixo Alentejo e na Beira Interior, resultou de “um período com temperaturas [elevadas] que levaram à proliferação do mosquito”.
Já o Ministério da Agricultura e Pescas salienta que “a doença é transmitida por um insecto picador, pelo que sua ocorrência está relacionada com a temperatura e, de certa forma, com a humidade”. “Durante o tempo quente vai crescendo o número de insectos”, refere, salientando que esta é “a época em que nos anos anteriores se verificaram mais focos da doença”.