O Coração Ainda Bate. Para qualquer emergência
Inês Meneses sobre amigos e canções, um resgate seguro.
O lugar grau zero é onde os pensamentos nascem, disse eu ao meu amigo, que vive, para já, inconsolável com um desgosto de amor. Quando os amigos estão tristes procuramos as palavras mais certeiras para lhes darmos o conforto perdido. Não podem ser palavras banais, porque os amigos são os troféus de uma vida. Eu ostento os meus sem parcimónia. São também a minha fortuna. Reencontrar um amigo que sofre, porque lhe escapou o amor de anos, é uma bênção. Talvez não tenhamos estado presentes nos últimos tempos, porque vivíamos, entretidos, as nossas vidas, mas eis que o chão nos escapa, abre-se uma cratera e lá estamos nós a dizer – presente! Os amigos, os que estão estranhamente entranhados, mesmo que não necessariamente activos, nunca se vão embora.
Quando ele me falou do pensamento ruminante da temerosa solidão, eu acenei-lhe com esse lugar grau zero, onde os pensamentos nascem. Estava a dizer-lhe que é possível começar de novo, de forma limpa, que a dor, por mais estranho que lhe pareça agora, vai dar lugar a outras coisas, que um dia voltará a dormir bem e que olhará para outras pessoas com espevitado interesse. Nada disso, agora, parece uma hipótese, mas nós, os insuportavelmente mais velhos, sabemos como isto é líquido, como acontecerá e se pode repetir ao longo das nossas vidas, mostrando que estamos vivos, que dói por isso mesmo. Estar vivo e dormente não combina.
Tentando animá-lo com as minhas palavras escritas, fui dizendo que quem ama a música encontrará sempre salvação, um par, um gira-discos amigo. Eu encontrei-me muitas vezes com a música a ir buscar-me a um beco sem saída, apontando-me outras direcções menos sombrias. Talvez seja preciso ver na música esse poder salvífico para acreditar nesse resgate, que repeti vezes sem conta. As canções que coleccionei serão a minha reforma. Confio mais nelas do que na Segurança Social.
Para já, ao meu amigo custará encarar algumas melodias que o levam novamente para um presente que já não existe. Também é isso que fazemos com a música: tentamos que as canções possam emergir do passado para nos dar um presente que já não se conjuga a dois. E encontramos conforto nisso, mesmo que tudo seja ainda áspero, agreste, que as noites não tenham fim, nem as manhãs sentido.
O lugar grau zero que inventei para lhe dar ânimo existe, mas só nos daremos conta disso quando já estivermos noutro patamar. Descolamos da dor da perda sem perceber. Porque os dias parecem um todo e é difícil dizer que já estamos novamente prontos. Quantas pessoas já ouviram confessar que estão prontas de novo para sofrer? O amor não é necessariamente uma dor, mas nos altos e baixos detectamos grandes vales e vale-nos de pouco quando dele precisamos.
As nossas vidas não seriam as mesmas sem estas dores, estes rostos coleccionados, estas canções que guardamos como um molho de notas escondido para “qualquer emergência”. As canções estão, sem planearmos, guardadas para “qualquer emergência” e, sim, são um molho de notas bonitas que recordaremos com o passar dos anos.
Ao meu amigo de anos, que está no lugar grau zero, desejo que dele tomem conta novos pensamentos e acções, mas, antes das acções, que se forme dentro dele o lugar do novo e da esperança. É terrível quando achamos que a solidão nos pode ocupar, não percebendo que somos nós sempre a ter o poder de a povoar. Nem sempre com pessoas, às vezes somente com ideias, futuros imaginados, canções que tomam de assalto essa solidão. As canções soterram o pior dos pensamentos. Trazem novos amigos mesmo que imaginários. Um molho de notas soltas para qualquer emergência.
O coração ainda bate