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Cintya investigou a experiência das pessoas cegas no teatro, que agora pôs em livro
Durante pesquisa para tese de doutorado, Cintya Floriani mergulhou no mundo dos que não enxergam, trazendo à tona percepções e sensibilidades únicas, que muito podem contribuir para todos.
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Se não pudéssemos ver o mundo, ele seria como o conhecemos? A pesquisadora Cintya Floriani Hartmann mergulhou nessas e outras questões em sua pesquisa de doutorado na Universidade de Lisboa, organizada, agora, em livro: Theasthai, O Poder de Não Ver, que será lançado em 16 de novembro na Escola do Largo em Lisboa.
Usando como ponto de partida dois momentos distintos da sua trajetória de vida — a sua carreira como jornalista de televisão e quando desenvolveu um trabalho de inclusão de pessoas com deficiência —, Cintya mergulhou no mundo da cegueira. Conviveu e criou laços de amizades com um grupo de pessoas cegas. Conheceu a literatura produzida por estudiosos e criou um grupo de trabalho e pesquisa chamado Olhar Ativo.
O trabalho foi iniciado a partir da experiência de um grupo de pessoas cegas na plateia de teatros. Essa convivência permitiu a autora oferecer uma reflexão sobre “uma certa cegueira” que nos acomete a todos. Mostrando a diferença como potência para a criação e inovação. Esse trabalho é o primeiro do gênero em língua portuguesa. Cintya Floriani conversou com o PÚBLICO Brasil sobre a sua pesquisa.
Como chegou a esse objeto de pesquisa?
Toda pesquisa investigativa começa de uma intriga que é provocada pelo próprio investigador, que acaba sendo a gênese de uma hipótese. Fui, durante muitos anos, jornalista de televisão. O consumo de imagens diário que eu tinha era excessivo, e bloqueou a minha capacidade de ver o mundo à minha volta, se não fosse por meio de uma tela. Muitas vezes, o que está na tela acaba sendo mais verdade do que está ao redor de nós. Percebi como aquilo me afetava. Isso, há 25 anos, antes da internet. Depois, tive a oportunidade de criar um projeto de inclusão para pessoas com deficiência dentro de uma organização que tinha mais de 9 mil funcionários. Foi aí que entrei em contato direto com a diferença das deficiências.
E como uniu essas experiências ?
Quando pude me permitir realizar uma investigação para um doutoramento, quis unir as duas experiências. Era muito importante para mim que o tema de investigação do doutoramento tivesse um engajamento social e me fizesse conhecer mais sobre a minha experiência no mundo. A partir daí, criei um projeto de investigação de doutoramento para a FCT, sobre a experiência da pessoa cega na plateia dos teatros de Lisboa. Nesse caso, do Teatro Nacional Dona Maria II e do Teatro Municipal São Luís.
Como tudo começou?
Quando cheguei a Lisboa em 2019, comecei a frequentar os espetáculos e as ações culturais dirigidas para pessoas cegas. Além de exposições, começava-se a ter com mais frequência ações de mediação cultural, como a audiodescrição nos teatros, sobretudo, no Teatro Nacional Dona Maria II e no Teatro Municipal São Luís. Fiz um acordo com os dois teatros e, aos domingos, eu estava sempre lá. Entrei em contato com a Associação Olhar Ativo, de Sintra, que é presidida por duas pessoas cegas, o João Pereira e a Graça Santos, e que atende pessoas com deficiência visual ou que estão com baixa visão. Por intermédio deles, fiz uma parceira para a minha pesquisa. Sete associados aderiram a idéia e, a partir do final de 2019, se converteram no grupo de pesquisa Olhar Ativo. Um grupo fixo que esteve junto de 2020 a 2023, atravessando a pandemia e frequentando espaços de teatro.
Como foi na pandemia?
Para a pessoa cega, o confinamento foi um problema muito maior do que para quem vê. Ela precisa tocar tudo, porque é uma forma de enxergar, em uma época que estávamos impedidos de tocar. São pessoas que convivem em comunidade. Literalmente, estão sempre coladas umas às outras para se guiarem como uma massa de carne no espaço público ou com a ajuda de alguém ou além da própria bengala, que é uma extensão do corpo que toca o mundo. Nossa dinâmica de trabalho era um encontro pessoal pelo menos duas vezes por mês. Íamos aos espetáculos aos domingos e nos reuníamos para conversar sobre outras coisas. Foi essa relação afetiva de uma investigação científica que permitiu que eu atravessasse essa fronteira e estivesse no mundo deles.
Você entrou em um novo mundo?
Para entrar no mundo da cegueira frequentei ambientes com eles, fizemos atividades lúdicas juntos, nos tornamos amigos e frequentamos a casa um do outro. Fizemos piqueniques e outras atividades culturais e de ócio para conversar mais e para que a minha pesquisa fosse uma tradução disso tudo.
Essa dinâmica foi fundamental...
Essa pesquisa propõe uma transformação no conceito de inclusão. A palavra inclusão, durante a minha investigação, passou por uma grande transformação. Primeiro, que pertencer a um grupo significa ser propriedade deste grupo. Não poderia fazer uma pesquisa propondo uma inclusão de pessoas com deficiência sem entender realmente quem elas são.
E no teatro?
Não era simplesmente a formulação de uma opinião sobre um espetáculo. Os dois teatros nada mais eram do que uma espécie de laboratório de comportamento humano. No teatro, eu podia analisar a experiência de quem não vê e está imerso numa realidade e em contato com o movimento. A reação do público a esses sentimentos humanos que estão sendo representados também me interessava para comparar a reação de uma pessoa que vê com a tradução da experiência de quem não vê. Isso me permitiria avaliar o quanto podemos, nós que vemos, também estar cegos para a experiência de mundo.
Uma imersão inclusive literária?
Utilizei só autores cegos. Existem autores, sobretudo da área de sociologia e da filosofia, que escrevem sobre a sua realidade de mundo. São eles mesmos que separam o nosso mundo entre o mundo da visão e o mundo da cegueira. Consideram que somos dois mundos distintos. Só que as pessoas no mundo da cegueira são submetidas às regras do mundo da visão, para poder nele viver e estar incluída. Eu tinha que encontrar uma maneira de entrar para poder entender qual é a experiência e, a partir daí, traduzir essa experiência de superar o limite da palavra. Como diz o artista que nos cedeu fotografia para a capa do livro, eu poderia realmente traduzir a experiência deles usando as palavras do mundo da visão ou usando ou propor um novo vocabulário que pudesse traduzir a experiência sob a condição da cegueira.
Quem é o autor da foto?
O artista, filósofo e fotógrafo que cedeu as duas fotografias que estão publicadas na capa e na apresentação do livro se chama Evgen Bavkar. Ele é esloveno e vive em Paris. É um pensador que propõe muitas reflexões sobre o limite da palavra. Quando não temos palavra para expressar o que estamos a sentir. Ele coloca essa proposta de pensamento para imaginar o que seria para nós, que vemos, estar no mundo da cegueira e tentar expressar o que sentimos de mundo sem ver. Foi necessário entrar no mundo da cegueira para poder traduzir essa experiência.
Como é esse vocabulário?
A última parte da investigação traz um AbeCegário, um vocabulário criado para traduzir a experiência da pessoa cega, que possibilita superar o limite da palavra para traduzir o mundo da cegueira. Essas palavras foram criadas a partir dessa imersão para melhor definir a experiência de mundo sob a condição da cegueira. De um lado, a inclusão pode ser uma imposição. Para que ela possa viver no mundo da visão, ela tem que passar por uma reabilitação. É muito forte imaginar o sentido dessa palavra. Os próprios teóricos cegos utilizam referências, inclusive de ficção, tentando explicar para nós, que vemos, como seria a nossa realidade se entrássemos no mundo onde ver fosse uma deficiência. Como está no livro The Country of the Blind, escrito por Herbert George Wells, uma referência utilizada por esses estudiosos cegos por explicar muito bem como seria essa realidade. Um mundo onde ver seria uma deficiência. A única reabilitação para aquele que vê seria extraindo os olhos, para ele poder adaptar-se aquele mundo.
Como está sendo recebida sua pesquisa?
Acredito que, principalmente nas ciências humanas e sociais, existe muito tabu de falar de afetos ou sentimentos. Foi a partir dessa relação afetiva que as verdades puderam aflorar. Acho que para todos, mas sobretudo para a pessoa cega, uma relação de confiança é fundamental para que possamos criar algo juntos. Confiar no outro, que não vejo, conheço a voz e percebo o cheiro, mas não preciso saber como se veste, a cor que usa, quais são seus gostos estéticos. Através de atitudes concretas, se cria confiança. Isso precisa de uma proximidade física e afetiva para se conquistar.
Você fala que a visão é o monopólio dos sentidos?
"Olhe para o espelho, aquele que te mira é um predador". Essa frase de Diane Ackerman, que escreveu sobre a história natural dos sentidos, explica porque a visão tem esse monopólio. Cada vez mais com o mundo que estamos a viver, dar visibilidade, buscar visibilidade é o que tem valor. No mundo da cegueira, se nós adentrássemos lá, era o não ver que teria valor. Como eu disse, ver seria uma deficiência. Por estarmos monopolizados pelo que se vê, esquecemos que temos um corpo que sente.
Como você percebe a relação da pessoa cega com o mundo?
É uma relação de incorporar o que está ao redor de si. Inclusive, às vezes com o próprio toque, utilizo um verbo em espanhol que não existe em português, que é o otear, que, no AbeCegário, significa ver como quem tateia, olhar com o tato. A relação entre a pessoa cega e o mundo, os objetos e as pessoas é simbiótica. Não coloca o homem no centro de uma existência, mas como parte dela, que seria muito mais intensa se permitíssemos o nosso corpo sentir e não ser monopolizado pelo que vê.
Qual o poder de não ver?
O poder de não ver é aquele que cria o mundo a partir do nada. Não é a escuridão, é o nada. É o poder de incorporar a experiência e ser consciente de como ela nos transforma. É o de perceber o que está entre as coisas vistas. É a capacidade de revelar, como quem coloca um véu sobre o velado, a essência das coisas. É uma potência para processos de criação e de inovação que estou a desenvolver a partir deste livro.