Saúde mental: “Coisa mais preciosa no mundo não há”
Tem razão Milton Nascimento ao cantar “amigo é coisa para se guardar do lado esquerdo do peito mesmo que o tempo e a distância digam não”.
Tal como havia combinado com a minha amiga, como eu, psicóloga, estava a procurar avançar (pelo menos) parte deste texto que decidimos em conjunto escrever sobre amizade e saúde mental (consideramos que fica bem a duas psicólogas fazê-lo), quando ouço uma notificação do telemóvel. O pliim era uma mensagem de outra amiga (não psicóloga; os psicólogos também têm amigos não psicólogos, por estranho que pareça). Há já muito que não estávamos juntas (um mês? Um pouco mais, um pouco menos, não sabemos bem. Certo era que ambas achávamos que não estávamos juntas há muito tempo. A perceção — partilhada — é mais relevante do que a realidade).
No início da semana, tinha dado indicação de querer estar comigo, “pensar alto” com alguém que lhe é relevante, que a conhece, às suas circunstâncias, competências e dificuldades. Partilhar-se num “espelho relacional” e assim melhor tomar uma decisão. Não necessariamente a melhor decisão, entenda-se. Apenas a decisão que mais sentido neste momento faça. E isso não raras vezes exige interlocutor. O que esteja disponível a acolher, sensível às necessidades, focado em responder-lhes. Um amigo. Disse-lhe que viesse cá a casa. Está a chover neste fim de tarde e caminhar pelo bairro como costumamos fazer não é particularmente aprazível. Daqui a nada toca a campainha e terei de interromper este texto sobre amizade e saúde mental. Por se tratar de amizade. E saúde mental.
A campainha tocou, o abraço deu-se, a conversa desenrolou-se, o sentido criou-se, o vínculo fortaleceu-se, o bem-estar (de ambas) potenciou-se. A amizade aconteceu. E a saúde mental.
Volto assim ao texto, renovada a experiência que a literatura sobre o tópico evidencia e a que com a minha amiga (a psicóloga) se dará sequência — as competências mais salientes de ambas permitem a coconstrução de algo que individualmente diferente seria. Assim é o estar-se em relação: a amizade consubstancia-nos, gera desenvolvimento, cria.
O que não invalida possíveis impasses ou mal-entendidos. Na verdade, como é comum acontecer nas relações, fui invadida por emoções contraditórias ao ler o primeiro esboço do texto que redigiríamos em conjunto. Alegria, ao perceber a importância do encontro de uma amiga com uma pessoa com quem tem a oportunidade de encontrar-se mais regularmente, mas, ao mesmo tempo, um pouco de indignação. “Então, o artigo é sobre a nossa amizade e escreves sobre outra amiga tua?!” Muito provavelmente, foi a prática clínica que me permitiu regular emoções e colocar-me no seu lugar. Percebi que a amizade o exige e que não é nem deve ser exclusiva de uma pessoa. Esta multiplicidade relacional não só é, como gera saúde mental.
Prossigo. A anotação a verde (esse nosso comungado verde!) propõe que elabore sobre os correlatos da amizade na saúde, adotando uma perspetiva holística, onde se inscreve a saúde mental. Novo desapontamento: “Que seca! Eu queria falar sobre nós sem ter de dizer que tu fazes exercício físico e eu não, que adoro doces e tu portas-te bem!”.
Mas a amizade requere-o também, o reenquadrar posições individuais em prol de um ganho comum. E a verdade é que a investigação sugere contribuições várias da amizade para o bem-estar, incluindo a proteção transmitida pelo apoio social contra problemas de saúde mental como a ansiedade e a depressão, bem como a redução do risco de desenvolvimento de doenças físicas, inflamatórias ou cardiovasculares. Tem razão Milton Nascimento ao cantar “amigo é coisa para se guardar do lado esquerdo do peito mesmo que o tempo e a distância digam não”. Mesmo amizades pautadas por interações menos regulares, desde que estáveis e percebidas como de confiança, exercem equivalente efeito. Passamos anos sem nos vermos mas sabemo-nos uma para a outra.
E sabemo-nos uma para a outra nas nossas histórias coincidentes e também quando discordamos sobre algo (sobre nós, também). Para uma de nós, é claro termo-nos conhecido em 1996 na fila da cantina da Universidade do Minho, embora a outra negue que tenha sido assim e afirme que jamais ali nos cruzámos… A memória de uma retrata alguém com cabelos longos, que a outra jura nunca ter tido, com uma enorme capacidade de expressão verbal, que rapidamente descobriu também escrita, quase purista, e com humor preciso (humor precisa-se nas relações). Ao fim de 20 e muitos anos até é possível anuir a que a memória tenha atraiçoado quanto aos cabelos, porém, é inquestionável a certeza sobre o companheirismo e a admiração que reciprocamente existe.
Na construção do nosso vínculo está presente a partilha, a presença, a expectativa do encontro e o afeto, que nos aproxima sempre que trocamos mensagens ou falamos ao telefone. Nesses breves encontros, escritos ou falados, o riso é certo e a sensação é de rejuvenescimento “de corpo e alma”. Por vezes até perante dissabores sentimo-nos livres para rir em vez de chorar. Lembro-me de não conseguirmos conter o riso, às vezes em situações em que deveríamos tê-lo feito. Na verdade, anseio por um novo episódio em que isto aconteça. De igual forma, lamentamos quando sentimos falta da presença da outra num determinado momento ou situação. Juntas, temos histórias e emoções inenarráveis, que nos dão segurança emocional e criam resiliência, ao mesmo tempo que me tiram um sorriso enquanto agora relembro e escrevo (e sei do seu sorriso ao ler isto).
Este é o poder da amizade: o fortalecimento da nossa confiança e da validação de quem somos; ao mesmo tempo, um recurso valioso nos momentos de maior dificuldade e um fator de proteção para a saúde mental. Os amigos dizem-nos aquilo que precisamos ouvir e dão-nos segurança para descobrir as nossas competências, explorar o mundo e a nós mesmos. Não é por acaso que existem inúmeras músicas sobre a amizade e uma conhecida série de televisão que retrata o modo como os amigos se constituem num dos laços mais poderosos e promotores de bem-estar.
Escrever este texto a quatro mãos é do exposto concretização. Porque, como refere Luís Amorim de Sousa, “a amizade não pede antecedentes, exige apenas expressão".