Líderes da Commonwealth desafiam Reino Unido e dizem que “chegou a altura” de falar de reparações
Contra a vontade do primeiro-ministro britânico, comunicado final da cimeira na Samoa defende “diálogo significativo, verdadeiro e respeitoso” sobre “justiça reparadora” no âmbito da escravatura.
O Governo e o primeiro-ministro do Reino Unido sofreram este sábado uma derrota diplomática na Commonwealth, com consequências que ainda não são totalmente claras, mas que têm potencial para alterar a forma como o país se relaciona com a organização sucessora do Império Britânico.
Apesar da oposição de Keir Starmer e da insistência de que o tema das reparações históricas – por causa do papel do Reino Unido no comércio transatlântico de milhões de escravos durante o período colonial – não estava na agenda da cimeira que terminou este sábado, na Samoa, os líderes da Commonwealth conseguiram introduzir no comunicado final do evento dois parágrafos sobre o assunto, que dizem que “chegou a altura” de iniciar formalmente esse debate.
“Registando os apelos para discussões sobre justiça reparadora no que respeita ao comércio transatlântico de africanos escravizados (…) e reconhecendo a importância desta matéria para os Estados-membros da Commonwealth, a maioria dos quais partilha experiências históricas comuns em relação a este comércio abominável, a escravatura, a debilitação e desapropriação de povos indígenas, a servidão, a colonialismo, e a ‘blackbirding’ e os seus efeitos duradouros, [os chefes de Governo] concordaram que chegou a altura de um diálogo significativo, verdadeiro e respeitoso para forjar um futuro comum baseado na equidade”, lê-se no documento aprovado no final da CHOGM, a cimeira de líderes da Commonwealth, que se realiza de dois em dois anos.
Segundo o comunicado, os líderes dos Governos dos 56 países da organização “também concordaram em continuar a desempenhar um papel activo na realização de discussões inclusivas sobre estes danos, dedicando especial atenção às mulheres e raparigas, que sofreram desproporcionadamente com estas terríveis tragédias da História da humanidade”.
Citado pela Reuters, Kingsley Abbott, professor e director do Instituto dos Estudos da Commonwealth, da Universidade de Londres, defende que a referência à “justiça reparadora” no comunicado da organização “abre a porta para o diálogo” e tem potencial “histórico” para avanços sem precedentes nesta matéria. “Agora é que vai começar o trabalho duro”, alertou, no entanto.
Em declarações aos jornalistas, em Ápia, no final da cimeira, Starmer explicou que o comunicado “toma nota dos apelos para uma discussão” sobre justiça reparadora e “concorda que chegou a altura de haver essa discussão”, mas sublinha que se trata de um “comunicado relativamente longo” que tem como “prioridades absolutas” a luta contra as alterações climáticas e o incremento das relações económicas entre os membros.
Para além disso, o primeiro-ministro trabalhista revelou que “durante os dois dias” em que esteve na Samoa, “nenhuma das discussões foi sobre dinheiro”. “E a nossa posição é muito, muito clara em relação a isso”, atirou, citado pelo Guardian.
Antes e durante a CHOGM, apesar dos apelos dos membros da Comunidade do Caribe (CARICOM), responsáveis do Governo britânico insistiram que o Reino Unido não estava interessado em discutir o tema na cimeira e asseguraram que o país não pretende pagar reparações financeiras ou não financeiras pelo seu papel no comércio de escravos.
Segundo a Reuters, pelo menos 3,5 milhões de pessoas foram sequestradas e vendidas como escravos por comerciantes ligados ao Império Britânico, a maioria para as colónias nas Caraíbas, entre os séculos XV e XIX.
Algumas entidades britânicas, como a Igreja de Inglaterra, o banco Lloyds, a Universidade de Glasgow ou o jornal Guardian já prometeram reparações pelo papel que desempenharam na defesa ou promoção daquelas práticas. A Família Real também autorizou investigações ao papel da monarquia no comércio transatlântico de escravos.
Em declarações à BBC, na quinta-feira, Keir Starmer afirmou que o comércio de escravos foi “hediondo” e que é necessário “continuar a falar” sobre o passado e a História do Reino Unido, mas disse que é preciso “olhar para frente, em vez de olhar para trás”, em vez de se avançar para “discussões longas e intermináveis sobre reparações”. “Não podemos mudar a nossa história”, sublinhou.
A par do comunicado final da CHOGM, a eleição de Shirley Ayorkor Botchwey para secretária-geral da Commonwealth também dá um sinal claro da maioria dos seus membros de que o tema das reparações históricas veio para ficar. A actual ministra dos Negócios Estrangeiros do Gana também defendeu publicamente a abertura de um diálogo formal sobre o assunto no seio da organização.