Com The Shards e O Palácio de Cidadãos, prémios do Doclisboa reflectem os nossos dias

O diário de uma jovem russa num país que não reconhece como seu e o quotidiano da Assembleia da República ganham as competições 2024 do festival de não-ficção.

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Em The Shards, Masha Chernaya transporta-nos à Rússia de Putin para acompanharmos o seu diário emocional DR/DOCLISBOA
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The Shards, da russa Masha Chernaya, e O Palácio de Cidadãos, do português Rui Pires, são os vencedores das competições do Doclisboa 2024, revelados ao fim da tarde de sábado na Culturgest após a exibição do filme oficial de encerramento, O Dia que Te Conheci, do brasileiro André Novais Oliveira. Ao premiarem o diário emocional de uma jovem russa, que é também o retrato de uma geração encostada à parede pelo regime de Vladimir Putin, e um olhar sobre os bastidores da Assembleia da República, os júris das competições escolheram premiar filmes que, sem serem directamente activistas, prestam especial atenção às turbulências sociais e políticas que atravessamos, mesmo que de modos diferentes.

Na competição nacional, julgada pela coreógrafa Cláudia Dias e pelos programadores Rada Sesic e Carlos Gutiérrez, o desequilibrado O Palácio de Cidadãos, que acompanha principalmente os debates e votações (sobretudo sobre a Lei de Bases da Habitação) ao longo de toda uma legislatura, foi eleito como melhor filme. As Noites Ainda Cheiram a Pólvora, meditação sobre a memória da guerra civil de Moçambique e a sua constante assombração do futuro, rodada por Inadelso Cossa na aldeia dos seus avós, recebeu o prémio do júri.

Outros títulos portugueses galardoados foram Estou Aqui, filmado no centro de acolhimento de cidadãos sem-abrigo do Casal Vistoso durante a pandemia de covid-19 (prémio Escola, atribuído por um júri da ETIC — Escola de Tecnologias, Inovação e Criação), bem como Por Ti, Portugal, Eu Juro!, apresentado fora de concurso, sobre os comandos africanos que lutaram por Portugal na guerra colonial (Prémio do Público), que estreará nas salas no início de Novembro. Títulos mais alinhados com a tradição clássica do documentário como registo e intervenção na sociedade, numa escolha perfeitamente defensável mas que, pessoalmente, nos parece tímida e algo conservadora que sublinha a importância do tema mais do que a sua dimensão de objecto cinematográfico.

No concurso internacional, cujo júri compreendia a actriz Crista Alfaiate, os cineastas Luciana Fina e Eryk Rocha e os programadores Luís Miguel Oliveira (igualmente crítico do PÚBLICO) e Richard Peña, os prémios souberam escolher numa selecção a meio gás bastante mais desafiadora das convenções. O justíssimo vencedor, The Shards — provavelmente o melhor e mais conseguido dos títulos a concurso — utiliza a forma do diário íntimo para retratar, mais do que uma vida, toda uma sociedade fragmentada e polarizada.

Uma estética partilhada com os dois prémios do júri ex-aequo, que partem do pessoal para o universal embora em territórios “híbridos” que escapam a definições fáceis. O indescritível Fire Supply, da argentina Lúcia Seles, constrói uma ficção a partir da realidade como um espelho que a distorce; o opaco L’Ancre, da belga Jen Debauche, recorre a vivências verídicas de episódios psicóticos como alicerce de uma “navegação à vista” entre realidade e ficção. De salientar que L’Ancre foi o único filme duplamente premiado, tendo igualmente recebido o prémio transversal Revelação para a melhor primeira longa-metragem.

Já anunciados tinham sido os prémios da competição Verdes Anos (filmes de realizadores emergentes e em contexto escolar), entregues a Petrolia, da italiana Giulia Mancassola, Os Mortos de Sobrecasaca, do português Manuel Rainha, e La Mue, da francesa Judith Deschamps.

Como habitualmente, os filmes vencedores serão exibidos no cinema Ideal nos próximos dias 28, 29 e 30. As datas da edição 2025 estão já marcadas — o Doclisboa decorrerá de 16 a 26 de Outubro.

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