Preocupações de um “ideólogo de género”

Como “ideólogo de género” que sou não consegui evitar fazer uma associação imediata entre o discurso do PM e o movimento de ataque ao conhecimento científico nas áreas da sexualidade e do género.

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As teorias queer são um conjunto de trabalhos académicos que desafiam as normas sociais impostas à sexualidade e ao género, propondo que os papéis de género são construções sociais passíveis de desconstrução em prol do reconhecimento dos direitos e da dignidade humana.

O termo “queer” surgiu como uma expressão de abuso, violenta, mobilizada contra pessoas LGBTQIA+, sobretudo homens gays efeminados, em contextos anglo-saxónicos, um termo análogo ao português “paneleiro”.

O termo passou, no entanto, por um processo de reapropriação – por activistas, organizações e pela academia, que o recuperam como termo de luta – passando a fazer parte do léxico dos movimentos sociais e das representações culturais e mediáticas LGBTQIA+.

É na linha desta tradição de reapropriação que venho reclamar para mim o uso do título “ideólogo de género”.

A chamada “ideologia de género”, uma denominação com origem no Vaticano, que rapidamente se difundiu nos discursos dos mais variados líderes, sobretudo da direita mais radical, tem vindo a tornar-se um hot topic no debate público – gerando, ao que parece, grandes ansiedades e dúvidas na sociedade. Se esta “assustadora” ideologia “anda aí”, em algum lugar há-de estar a sua fonte. Está aqui! Sou eu. Eu e as muitas pessoas que, como eu, têm dedicado grande parte do seu tempo (e da sua vida) ao estudo científico – e, portanto, pautado pela objectividade, rigor e reflexividade – da sexualidade e do género, bem como das desigualdades que se geram em função destas categorias.

Entendendo a “ideologia” como um conjunto de ideias que compõem uma determinada cosmovisão, não me parece de todo mal que a minha seja interpretada como apontando para uma sociedade mais igualitária em termos do enquadramento da sexualidade e do género. Ademais, é em prol dessa transformação que tenho trabalhado – pela igualdade de género, contra a LGBTQIA+fobia, e em defesa dos direitos humanos.

No encerramento do 42.º Congresso do PSD, o Senhor Primeiro-Ministro do Governo de Portugal, Luís Montenegro, prometeu, relativamente ao curriculum da disciplina obrigatória de Educação para a Cidadania “reforçar o cultivo dos valores constitucionais e libertar esta disciplina das amarras a projectos ideológicos ou de facção”.

Como “ideólogo de género” que sou não consegui evitar fazer uma associação imediata (quiçá abusiva, mas o tempo o dirá) - entre o discurso do PM e o movimento de ataque ao conhecimento científico nas áreas da sexualidade e do género que se tem registado em vários países europeus como a Polónia, Hungria ou Itália.

Após estas declarações o espaço público viu-se inundado por uma discussão importantíssima – sobre as vidas de minorias sexuais e de género e, especificamente sobre as vidas de pessoas trans e não-binárias. No entanto, e infelizmente, muitas vezes esta discussão foi liderada por pessoas com muito pouco conhecimento sobre as experiências destas pessoas (salvo raras excepções), promovendo, sobretudo, desinformação sobre o tema.

Mas há quem saiba. Ao longo das últimas décadas, imenso progresso tem sido feito no campo dos estudos sobre as vidas e experiências de pessoas LGBTQIA+, a nível internacional, mas também em Portugal, onde o campo dos chamados estudos queer ou estudos LGBTQIA+ se tem vindo a consolidar em publicações, projectos internacionais e grupos de investigação.

A ciência neste campo prolifera – no entanto, a política e a opinião pública parecem absorver muito pouco desses avanços científicos – talvez por falta de uma colaboração mais contínua com “ideólogos de género”?

Se tanto se discute a “ideologia de género” porque é que se sabe tão pouco sobre ela?

Procurando defender o ponto de vista da minha “facção” – de “ideólogos de género”, claro - o conhecimento sobre sexualidade e género pode ser muito libertador, permitindo saber mais sobre um campo historicamente negligenciado da experiência humana nas sociedades ocidentais, e construir relações mais informadas com a nossa própria identidade, intimidade e sexualidade. Para além disso, os conhecimentos nos campos da igualdade de género, educação sexual e direitos humanos permitem capacitar crianças e jovens para uma resposta mais adequada à violência – sexual, de género, doméstica e no contexto de relações de intimidade ou bullying – garantindo que dispõem das ferramentas para identificar e denunciar estas formas de violência.

É sempre importante repetir que a ideia não é tornar ninguém LGBTQIA+ – porque isso é aliás impossível, mas promover um entendimento mais complexo da sexualidade e género – inclusivo das experiências destas pessoas.

Face à aproximação do discurso do PM às narrativas anti-género, vale a pena relembrar que pessoas trans e não-binárias representam dos grupos mais violentados e discriminados das nossas sociedades, não só hoje, como ao longo da história, e não podem ser reduzidas a armas de arremesso político ou a danos colaterais de cálculos eleitorais.

Neste debate o que está em causa é a dignidade básica de minorias sexuais e de género, aliás prevista no Artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa e que é agora questionada, mais uma vez, ao mais alto nível, e isso, deve fazer disparar os alarmes de todas as pessoas que acreditam numa sociedade justa, igualitária e democrática.

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