Confesso que bebi
Já devo ter falhado alguma harmonização vinho-prato. Perdoem-me os entendidos, confesso que sigo uma máxima: só beber o que me sabe bem.
“Confesso que bebi.” Quando ouvimos esta frase fora de um contexto específico, a nossa mente assume imediatamente que quem a diz se refere ao consumo de álcool. Ninguém pensa em água, sumo, café, chá ou mesmo cerveja sem álcool. Ao ouvirmos “confesso que bebi”, associamos imediatamente ao álcool — àquele que sobe à cabeça, leve primeiro, pesado depois. Sem outro contexto, só o álcool justifica uma confissão sobre algo que se bebeu.
Confesso, na primeira pessoa, que bebi. Mas não muito, confesso — mesmo beber pouco, em alguns contextos, justifica uma confissão —, pois tenho mau vinho. Não me entendam mal. Não me torno implicativo ou quezilento, nada disso, simplesmente fico indisposto, chato, mole, sonolento. Mas não sonolento o suficiente que me dê para dormir — com alguma quantidade de álcool no organismo, não consigo pregar olho. E as ressacas? Terríveis. Vai daí, em 49 anos, apenas me lembro de três ocasiões em que bebi mais do que a conta. Alguma delas de caixão à cova? Nem de perto.
O último exagero? Há cerca de uma dúzia de anos, num jantar de amigos, que bebiam à séria e que acabaram com o stock de garrafas de um vinho branco que apreciavam. Deixo-vos o diálogo que rematou o jantar:
— Ó chefe, traga mais uma garrafa deste vinho —, disse um dos meus amigos.
— Desse não tenho mais, acabou —, justificou o dono do estabelecimento.
— Acabou!? Como acabou!? —, insistiu o meu amigo.
— Acabando! Beberam-nas todas!
— Ó chefe, então e se a gente vem com vontade de beber, como é que era? —, rematou o meu amigo.
Confesso que, às vezes, bebo cerveja com pizza, e um copo de vinho tinto ao almoço de domingo, para escoltar os grelhados do meu pai, ou de branco, a acompanhar o peixe no forno da minha mãe. Confesso também que há ocasiões em que alinho o tinto com os queijos — o da Serra, o da Ilha e os secos alentejanos são os mais assiduamente convocados. Para o arroz de marisco caseiro, confesso a aposta irredutível num arinto de Bucelas. Entretanto, já devo ter falhado alguma harmonização vinho-prato. Perdoem-me os entendidos, confesso que sigo uma máxima: só beber o que me sabe bem.
O propósito destas confissões? Acompanhar outras de 11 escritores que foram convidados para partilhar, cada um à sua maneira e numa interpretação livre do tema, pontos de vista sobre beber álcool e bebidas alcoólicas. O resultado dessas confissões está reunido no livro Confesso que bebi, obra com a chancela municipal editorial Os Livros de Oeiras, cujo lançamento acontece nesta sexta-feira na Adega do Palácio Marquês de Pombal.
Por ordem de entrada em cena, os autores dos textos e respetivos títulos: Ana Bárbara Pedrosa, “Se o Manel bebeu, também bebi”; Dulce Maria Cardoso, “O improvável poder do vinho”; José Jorge Letria, “Brandy e água salgada na segunda viagem do Titanic”; Mário Cláudio, “Borrachinha”; Mia Couto, “Incertidão de óbito”; Nuno Camarneiro, “Tudo em vinho”; Richard Zimler, “O vigarista do vinho”; Rita Ferro, “Pássaros do Norte (conto inspirado em factos reais)”; Rui Couceiro, “O bromatologista”; Susana Moreira Marques, “Instruções para jantares com pessoas de meia-idade cosmopolitas”; Tânia Ganho, “Deus em Manhattan”.
E agora, permita-me que lhe sirva dois curtos trechos do livro. Pode ser que lhe provoquem vontade de o beber:
“Graças à literatura, fui outras vidas, outra gente: nunca bebi uma gota de álcool, mas isso não me impediu de ter sido alcoólica. Em vez de falar sobre mim, que tenho pouco interesse, deixem-me voltar-me para o Manel. Foi a minha criação mais livre – e, ao mesmo tempo, a mais filha da mãe. O Manel é um homem que não existia até ter vindo às minhas mãos.”
Ana Bárbara Pedrosa
“O homem voltou atrás, olhou para os meus olhos, abriu a carteira, depositou-me na mão uma nota de dez euros e, antes de descer a avenida com um lenço azul-celeste sacudido pelo vento, disse ainda: Mas é para gastares tudo em vinho.”
Nuno Camarneiro
“Não consegui perceber se gosto ou não de álcool. Creio que se não fosse alérgica, o processo de habituação ao álcool teria sido semelhante ao do café e ao do tabaco. Detestei tanto um como o outro quando os experimentei. No entanto, a rejeição excessiva que os adolescentes em geral dispensam ao que lhes desagrada transformava-se, na minha geração, em benevolência excessiva em relação à trindade álcool, café, tabaco. Não há surpresa nisso: fazemos tudo para pertencer ao grupo em que queremos ser aceites. Para a adolescente que eu fui, a idade adulta era uma miragem libertadora em que graciosamente se fumava, se tomava café e se bebia álcool. Tendo o meu corpo interditado o álcool, insisti no tabaco e no café até ficar dependente dos dois. Deixei de fumar há mais de uma década e basta-me um café por dia. Nunca somos mesmo os mesmos.”
Dulce Maria Cardoso
Curiosidade (será?): o livro vai ser distribuído numa caixa com a muito apropriada companhia de uma garrafa de vinho generoso Villa Oeiras, produzido na vizinha Região Demarcada de Carcavelos.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990