Um Pouco Mais de Azul: a palavra da semana é necear
O que fazem um jornalista, um economista e uma poeta, neste episódio do podcast Um pouco mais de azul?
Neste episódio a palavra escolhida é necear. Rita Taborda Duarte vai falar do livro Nada, da escritora catalã Carmen Laforet, editado em 1945 e que foi agora reeditado em Portugal. Francisco Louçã trata de duas formas de necear: trumpizar (enquanto comenta a cadeira de cidadania para a AD), e usar o Chat GPT para saber se o Orçamento do Estado é de esquerda ou de direita. Fernando Alves destaca o momento em que Luís Montenegro neceou, ao associar Cavaco Silva ao transformismo, uma disciplina na qual, seguramente, o professor não se reconhecerá.
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Em baixo pode ler excertos do episódio desta semana.
Que chatice, o Orçamento vai ser aprovado
Francisco Louçã
O Governo ganhou em toda a linha, ao que parece. Enredou o PS numa negociação que foi uma farsa, deu-lhe linha e anzol para se meter nas duas condições que tornaram vagamente imperceptível a sua estratégia e depois deu o xeque ao rei. Só que isto coloca agora um problema, é que este Orçamento era um manifesto eleitoral, servia para ser exibido na campanha em janeiro e, se tem de ser aplicado, fica curto de verbas e de razões. Não tem dinheiro, o que é que não perceberam?
Tem promessas, criou altas expetativas, a fila à porta do Terreiro do Paço é enorme, as associações empresariais dizem com ar compungido que tem “bons sinais”, mas “falta de ambição”, ou seja, dá poucas verbas aos empresários-que-não-querem-interferência-do-Estado. É por isso que, prevenindo-se, o ministro carrega nas cativações e, pela calada, vai reduzindo as previsões de crescimento para metade: eram fantásticas na campanha eleitoral, são agora medíocres, a política salvífica não resulta.
É também por isso que o primeiro-ministro, homem ladino, lançou no congresso a sua bomba da guerra cultural contra a disciplina de Cidadania. O que interessa são as creches sem vagas ou os alunos sem professor? Que nada, é o programa de uma cadeira em que se ensina a constitucionalidade da não-discriminação. Naturalmente, a operação tem sucesso garantido: o cheguinha do governo, o CDS, embandeira em arco; o verdadeiro Chega amofina-se; o ministro fica incomodado, parece que não é nada com ele; mas os estrategas dizem o óbvio, se resultou com Trump e Bolsonaro, como não vai resultar aqui? Pois esta é uma expressão da palavra escolhida para este episódio de Um Pouco Mais de Azul: o primeiro-ministro, na aflição de ter um orçamento para cumprir, decidiu necear. A política laranja ficou neceárica. Desconfio que assim vai continuar e que disso se vão lembrar as almas caridosas que ainda acham que o PSD é uma barreira contra a extrema-direita.
Nem só ao néscio
Fernando Alves
Nem só ao néscio sucede necear. Uso a palavra “sucede” pretendendo significar uma ocorrência (“nem só ao néscio ocorre necear”) e não uma sucessão, no sentido de herança, de passagem e/ou recolha de testemunho, em cargo ou título de maior ou menor notoriedade. Sucede, entretanto, o óbvio e justo: o caso que me ocorre para ilustrar o postulado inicial (“nem só ao néscio sucede necear”) exclui a figura a que me reporto da classificação de néscio, o que não anula que tenha tal figura, embora com o melhor dos propósitos, neceado. Contenhamos, pois, o caso em apreço no âmbito de uma certa inépcia, por vezes exuberante, na relação da figura em causa com a palavra. Não apenas na insistente utilização do infinitivo no arranque de uma frase (exemplo: “Dizer ainda que”).
Nada que um assessor atento não possa e não deva ir corrigindo.
Bate, desta vez, o ponto numa passagem vibrante do discurso de Luís Montenegro no 42º Congresso do PSD, em Braga.
Após ter fustigado os maiores partidos da oposição, Montenegro demarcou-se de pântanos e bancarrotas do passado recente e exaltou os méritos dos distintos correligionários que o antecederam no cargo: “Somos descendentes do sentido de Estado de Francisco Pinto Balsemão, do transformismo de Cavaco Silva, do patriotismo de Durão Barroso e Santana Lopes, da coragem de Passos Coelho e dos valores sociais-democratas de Francisco Sá Carneiro”. A sala vibrou de entusiasmo. E nenhum dos visados terá rejeitado a legenda que tão generosamente lhe era associada; nem Balsemão o sentido de Estado, nem Barroso ou Santana o patriotismo, nem Passos Coelho a coragem. Mas ter-se-á Cavaco reconhecido no rótulo do transformismo?
Enquanto teoria científica, o chapéu largo do transformismo leva-nos, por exemplo, a Darwin, à origem das espécies, à selecção natural. Não se trata de terreno em que o professor catedrático de Economia Política entretanto alcandorado aos mais altos cargos da política em Portugal se tenha movido com notória desenvoltura.
Já uma outra tradução, ainda mais corrente, da palavra transformismo usada por Montenegro como legenda de enaltecimento de Cavaco, introduz-nos no reino das drag queen, enfim, no vasto universo de trans-identidades.
Não adviria mal maior ao mundo com tal imprecisão, resultado mais do que evidente de um ímpeto de timoneiro galvanizado. Pretendendo, porventura (e não tomeis na expressão “porventura” qualquer referência a apropriações mais ou menos subliminares de bandeiras do Chega) enaltecer o ímpeto transformador da governação de Cavaco, Montenegro caiu no alçapão dos actos falhados, por deslize de linguagem mais do que, esperemos, por amarra ideológica.
Tudo lido e ouvido, comprova-se que não apenas ao néscio sucede necear. Nas melhores gravatas cai a nódoa e mesmo em quem as não usa. No calor do congresso, Miguel Pinto Luz arregaçou demasiado as mangas da oratória e, discursando em alta velocidade, garantiu aos congressistas: “Onde os outros prometeram e nada fizeram, nós tomámos decisões. Enfrentámos de frente”. Há engulhos verbais que provocam em quem os escute, por certo, mais “exasperança”, (e de novo cito Miguel Pinto Luz, cujo ponto alto comunicacional foi, já na segunda feira, a ida a uma bilheteira da CP para a compra do passe ferroviário, diante de uma bateria de câmaras de televisão). Terá o ministro comprado o passe por ter decidido abandonar o carro de serviço nas deslocações diárias ou tratou-se de uma estrita acção de propaganda à nova medida, cuja bondade não é para aqui chamada? Nesse caso, também o ministro neceou. E não havia necessidade.
Neceando (ou talvez não) por tudo o que é Nada, de Carmen Laforet
Rita Taborda Duarte
Correndo o risco, também eu, de necear, no podcast de hoje, escolhi falar de um livro: Nada, da escritora catalã Carmen Laforet (1921-2004). Um grande livro, mesmo não sendo uma novidade, é sempre novo. É novo, quando se lê pela primeira vez; é novo também sempre que relido. É novo, ainda, se, ao lermos, nesse livro, sinais de tempos antigos, nos apercebemos quão velhos são os tempos novos que acabam de despontar. Nada, o primeiro livro de Laforet, foi editado pela primeira vez, em 1945, no rescaldo da Segunda Guerra (tinha a autora 23 anos) e faz ressumar um país franquista, ofegante e esgotado, após a guerra civil espanhola. Estes dados históricos não se apresentam tematicamente no texto; só muito levemente, en passant, assomam apontamentos breves, reconhecíveis, mas não expressamente referidos. No entanto, as personagens, disfóricas, de uma tensão expressionista emergem da narrativa como sua consequência. O resultado é um ambiente soturno, ralo e opressivo, que se sente na respiração pulsada da história e no submundo habitado por personagens frágeis e amotinadas, feridas, cheias de ângulos e arestas. Andrea, uma rapariga sensível de 18 anos, orfã, chega a Barcelona, vinda da província. Vem, expectante, num arroubo de esperançosa liberdade, para estudar latim e grego, na universidade. É, então, acolhida por uma cidade pastosa, envolta em neblina e humidade; essas primeiras páginas servem de diapasão para ler a obra e cada uma das suas personagens. Ao chegar ao prédio onde vive a família, encontra como abrigo a decadência de um espaço físico desirmanado: um lugar-destroço a rimar com o tom expressionista que se abate sobre a narrativa; a miséria física e a pobreza daquela casa naquela cidade encontra ressonâncias na psique atormentada e doente das personagens que, por um equívoco, se juntam no mesmo universo grotesco, em que nada faz sentido. No meio da asfixia em que vive o romance, há a procura paroxista de um ponto de fuga. E há também a fome: a fome concreta roendo o estômago de Andrea, e sua fome ansiosa, metafórica, buscando, algures, um naco duro da liberdade. Este é um daqueles livros que não se desperdiça palavras à toa, imune que está ao necear mediático do fait divers. É importante resgatar ao silêncio livros como este, num mundo em que o perorar vai sendo regra, em que as opiniões flutuam, a reboque dos anúncios dos prémios, dos nobéis, das efemérides, comemorações, pretextos e festividades caducas. Precisamos de ler e reler aqueles livros que consentem um chão que se possa calcar, ou, como escreve o poeta Manuel António Pina, que acomodem, pelo menos, 2um lugar onde pousar a cabeça". O que antes se reservava ao recato do privado, agora tornou-se condição pública e as necedades (que não necessidades) antes proferidas à boca pequena, para ouvidos poucos, mesmo que não moucos, oferecem-se hoje, magnânimas ao mundo inteiro Empresta-se, pois, um megafone a cada voz que prometa necear.
Por isso também, preferi lembrar hoje um daqueles livros que não se deixam resgatar pela urgência da fala e do discurso célere, pela necessidade de assinalar efemérides com purpurinas.
E talvez não por acaso sinta que o significado deste livro, Nada, se possa concentrar inteiro na ressonância de um verso de Sophia, do livro Coral (1950):. "Terror de (te) amar num sítio tão frágil como o mundo". Em 1945, como em 1950. Como ainda hoje no aqui-agora de 2024.
Carmen Laforet
Nada
Cavalo de Ferro, 2024 (Tradução: Sofia Castro Rodrigues e Virgílio Tenreiro Viseu; prefácio Mario Vargas Llosa)