Larry Towell mergulha na história da Ucrânia para olhar a guerra
O livro The History War, do fotógrafo da Magnum, descreve oito anos de conflito na Ucrânia. “É necessário conhecer a história para compreendermos aquilo que os ucranianos estão a passar.”
Se existe um tema que interliga todo o trabalho do fotógrafo canadiano Larry Towell, membro da cooperativa de fotógrafos Magnum Photos há 36 anos, é o da relação do homem com a terra que habita; ou, mais concretamente, “como a terra transforma as pessoas naquilo que elas são e o que lhes sucede quando a perdem”, lê-se, escrito na primeira pessoa, no site da Magnum. As questões territoriais traspassam os muitos conflitos que Towell documentou ao longo da sua carreira, desde a guerra em El Salvador à ocupação israelita da Palestina, da invasão dos EUA do Afeganistão à da Rússia da Ucrânia.
E é sobre este último conflito que versa The History War, o livro que Towell lança agora pela Gost Books e que resulta de oito anos de imersão num território ucraniano convulso, em guerra. As quase 200 páginas da obra reúnem não apenas as fotografias que o canadiano captou entre 2014 e 2022, como também as colagens de materiais gráficos que encontrou no país e que usou para traçar o retrato histórico e identitário da Ucrânia.
Ao P3, a partir da sua residência no Canadá, junto à fronteira com os Estados Unidos, Larry Towell conta que, antes da revolução de Maidan, que teve a oportunidade de fotografar em Kiev, “tinha um conhecimento de leigo sobre a Ucrânia”. “Não compreendia a história do país”, admite. Foi lá parar, em 2014, porque “um fotógrafo da Magnum que estava em Kiev a ensinar um workshop enviou um e-mail aos membros da cooperativa dizendo que, se alguém quisesse viajar até lá, os seus estudantes ucranianos estariam disponíveis para auxiliar no terreno”. Towell tinha “um lugar onde dormir” e “podia contar com um jovem que falava ucraniano”, e isso “era tudo de que precisava para entrar num avião e rumar até Kiev”.
À chegada à capital da Ucrânia, o fotógrafo não acreditava no que viam os seus olhos. “Uma nação inteira parecia estar em pé de guerra, não armada, mas em protesto contra o Governo de [Viktor] Ianukovich.” Em torno da Praça Maidan, em Kiev, onde ficou alojado durante dez dias, viu uma multidão composta sobretudo por jovens, “na sua maioria activistas”, e por homens mais velhos, “bem organizados militarmente, que pareciam ter experiência no exército”, que “lutavam com paus, garrafas de cerveja, cocktails molotov, coletes à prova de bala feitos em casa e escudos feitos de tábuas”. “Fiquei espantado”, conta, entusiasticamente. Quando o recém-eleito Presidente Ianukovich fugiu do país, Larry viu “pessoas a entrar em veículos e a rumar à mansão presidencial”. “Vi-as derrubar as portas do edifício e entrar.” Fotografou.
Dois dias depois desse incidente, Towell abandonou a Ucrânia. “Quando estava no avião de regresso, perguntei-me ‘o que raio acabou de acontecer?’” Um fotógrafo russo, amigo de Towell, tinha-o alertado. “Disse-me, antes de embarcar, ‘acredita no que te digo: tu vais voltar, isto está longe do fim’. E tinha razão. Nos dias seguintes, a Rússia anexou a Crimeia e começou a treinar e a organizar militarmente os ucranianos russófonos do Leste do país.”
De volta ao Canadá, Towell mergulhou fundo na história da Ucrânia. “Para compreendermos aquilo que os ucranianos estão a passar, o que eles estão a fazer, porque estão a lutar esta guerra, é necessário conhecermos a sua história.” Sentiu que um livro seu sobre o conflito teria de incluir a história do país. “Tendencialmente, encaramos a guerra como algo do presente, como notícia do dia. Mantemo-nos informados relativamente aos ataques, ao número de mísseis, de mortos, etc. Não creio, no entanto, que isso seja o fundamental.”
Sabe que, sempre que se faz uma imagem, ela envelhece imediatamente. “Com as redes sociais, as imagens têm um tempo de vida de 24 horas. Eu faço livros na esperança de que esses resistam à pressão do tempo – e daí o foco na história.”
Mais do que um livro de fotografia
As primeiras 30 páginas da obra, que formam uma espécie de “livro de recortes”, são dedicadas exclusivamente à história da Ucrânia, ou do território que hoje lhe dá corpo. “Eu encontrei fotografias nas feiras de segunda mão ucranianas, pacotes de cigarros descartados por soldados russos nas trincheiras, muitos tipos de objectos avulsos, e fiz colagens que ilustram, de alguma forma, a história da Ucrânia desde o século V até 2024.”
A abordagem narrativa de Larry Towell é extremamente pessoal, visualmente caótica e nem sempre inteiramente legível. Dispostos sobre as páginas, com legendas identificativas manuscritas sobre fita-cola, os objectos que recolheu no terreno e reproduziu no livro traçam uma linha temporal; os mapas, medalhas, postais, cartas, fotografias tipo passe, papel-moeda antigo, selos com figuras históricas, embalagens vazias e panfletos promocionais de produtos que se vendem ou vendiam no território antes e depois da URSS, partilham, graficamente, de uma estética eslava profundamente reconhecível que imprime nas páginas do livro algo de marcadamente identitário.
Salta à vista o notável exercício estético de Towell, mais do que a informação que partilha nessa cronologia. “Eu estudei artes visuais”, sublinha o fotógrafo que também é músico de folk. “Também estudei fotografia e jornalismo, mas os trabalhos manuais fazem parte da minha natureza.” A plástica “towelliana” atravessa a obra, transformando-a num documento que, esteticamente, se distancia do clássico livro de fotografia; o conteúdo fotográfico de The History War, marcadamente fotojornalístico, torna a aproximá-lo desse cânone.
No primeiro dos seis capítulos que compõem a obra, a fotografia de Towell transporta o leitor para a Praça Maidan, para o palco da revolta de 2014 que resultou na morte de mais de cem manifestantes. A cores, a preto-e-branco, em formato clássico de dois por três ou panorâmico, o caos, a destruição, o fogo, o sangue e a morte preenchem quase todas as 70 páginas desse segmento – algumas das quais se abrem para revelar fotografias que se estendem por quatro páginas.
O segundo capítulo é dedicado a Tchernobil. “É o lugar onde, historicamente, senti que começou a queda da URSS”, explica o fotógrafo da Magnum. No local, no ano de 2017, acompanhou famílias que ali se refugiaram da guerra, apesar dos perigosos níveis de radiação. Após o segmento dedicado ao Donbass, onde o canadiano procura documentar a influência da propaganda do Kremlin sobre as populações da região, segue-se o capítulo “ATO”, acrónimo de “Anti-terrorist Operation”, em que Larry descreve o período que passou junto do paramédico ucraniano Alik, que em 2014 sofreu, juntamente com o seu pelotão, uma emboscada do inimigo russo no curso de uma batalha em Debaltseve, no oblast de Donetsk. “Alik tentou estabilizar os seus colegas feridos, esperando pelo momento em que pudessem ser levados”, escreve Towell. “Mas teve de correr em campo aberto para evitar os tiros das Kalashnikov e os morteiros. Muitos dos feridos foram executados no local. De acordo com os que sobreviveram fingindo-se de mortos, os perpetradores eram russos.”
O quarto e antepenúltimo capítulo é dedicado ao período que Towell passou junto dos separatistas da região Leste da Ucrânia, em Donetsk e Luhansk. “Assim que o movimento separatista se organizou, passou a ser praticamente impossível entrar na região como jornalista ocidental”, explicou o fotógrafo, que, apesar disso, conseguiu garantir o seu acesso. A maioria dos separatistas “eram mineiros [ucranianos] desempregados que empunhavam armas”, descreve. “Os russos eram discretos, mas estavam lá.” O fotógrafo conheceu o líder das operações de guerrilha, um “tipo baixinho, mas corpulento”, que se apresentou como sendo um “oficial russo”. “Contou-me que tinha combatido em três guerras russas e que aquela era uma delas. Putin afirmava, na altura, que nenhum russo liderava o movimento separatista no Leste e ali estava ele.”
Por último, o mais volumoso capítulo do livro é dedicado à invasão russa de grande escala, que teve início a 24 de Fevereiro de 2022. A gigantesca vaga de refugiados que se formou, a destruição de infra-estruturas civis ucranianas e o massacre em Bucha avivam a memória do leitor relativamente aos já distantes primeiros meses de guerra. À semelhança do que aconteceu noutros cenários de conflito que documentou, aquilo que Larry Towell viu na Ucrânia afectou-o pessoalmente. “Fez-me querer produzir um livro, dar entrevistas, falar do assunto. Fez-me querer mostrar as coisas, descrevê-las.”
Este é um livro “pessoal”. “Cada capítulo tem um texto que relata as minhas experiências, a minha presença na Ucrânia. Não pretendo ser objectivo, contar os dois lados da história; não quero ser o fotógrafo que não estabelece laços, que não se importa, que tem medo de perder o emprego se expressar uma opinião. Sou precisamente o contrário disso. A guerra para mim é pessoal, como é para todos aqueles que conheço, amigos ucranianos, jornalistas, que estão a arriscar a vida lá, agora. Ainda.”
Larry Towell quer participar no debate, ser uma parte da história. “E quero, com o livro, que as pessoas sintam. Quero que sintam a história, o lugar, as pessoas.”