Educação
Cidadania: a discussão além da política
Todas as semanas, os temas que interessam aos professores, pelas jornalistas Andreia Sanches e Cristiana Faria Moreira.
Ocorreu um erro. Por favor volta a tentar.
Subscreveu a newsletter Educação. Veja as outras newsletters que temos para si.
Caro leitor, cara leitora,
Começo por vos recordar as preocupações que alguns alunos partilharam comigo em Março, no âmbito de um trabalho que fiz sobre a educação sexual nas escolas.
Sentei-me com o Francisco, a Mariana, a Rita e a Joana, alunos de uma escola de Sintra, que me contaram a ideia que apresentaram ao orçamento participativo da sua junta de freguesia: ter, precisamente, “aulas de educação sexual para prevenir doenças e gravidez não planeada”.
Escreveram-no exactamente assim. Não o fizeram por piada, porque o tema é “fixe” ou porque queriam falar sobre sexo. Fizeram-no quando uma colega da idade deles – 15 anos – engravidou. Assistiram à forma como os colegas lhe apontaram o dedo, ao sofrimento por que passou em casa, ao isolamento que sofreu, enquanto a escola parecia fechar os olhos ao assunto. Sentiam falta de esclarecimentos, de alguém que lhes tirasse dúvidas.
Na prática, queriam falar sobre gravidez na adolescência, sobre bullying e cyberbullying, sobre aborto, sobre igualdade de género, sobre violência no namoro.
São jovens, como tantos outros, que consomem informação em séries, nas redes sociais, por toda a Internet, onde não há qualquer tipo de mediação. Na altura, perguntei-lhes se nunca tinham abordado estas questões, consideradas por muitos mais “sensíveis”, nas aulas de Cidadania. Disseram-me que não. A sexualidade era abordada apenas numa perspectiva mais biológica nas aulas de Ciências. De resto, pouco mais. Em Cidadania, o foco era “os direitos humanos”.
Por isso, reconheciam que era importante conversar sobre aqueles tópicos, mas também sobre diversidade e identidade de género — de “que também não se fala muito na escola”, onde chamar gay ou homossexual ainda é usado como um insulto, sobretudo pelos rapazes. “É um modo de atacar”, disse-me Francisco.
Há quatro anos, a Cidadania já tinha sido motivo de discussão quando dois alunos de uma escola de Famalicão faltaram à disciplina durante um ano por decisão dos pais. Alegavam objecção de consciência aos temas que ali são leccionados e envolveram-se numa disputa judicial com o Ministério da Educação.
Este domingo, a disciplina voltou a ser alvo de atenção, quando o primeiro-ministro, Luís Montenegro, fez da sua revisão uma das medidas prioritárias para o país: é preciso “reforçar o cultivo dos valores constitucionais e libertar a disciplina das amarras a projectos ideológicos e de facção”, disse, suscitando ruidosos aplausos.
Em reacção a este anúncio, o presidente da Associação Nacional de Directores de Agrupamentos e Escolas Públicas, Filinto Lima, resumiu assim a questão: “A disciplina de Cidadania não é um problema das escolas, nem nas escolas. É um problema dos políticos. Os problemas das escolas são a escassez de professores, as obras que estão por fazer.” E assumiu não ver “nada de ideológico” nos conteúdos que podem ser abordados na disciplina: empreendedorismo, bem-estar animal, direitos humanos ou sexualidade.
Quem contesta a disciplina argumenta que há matérias em que a escola não deve intrometer-se. Num mundo ideal talvez pudesse ser assim. Mas sabemos que há crianças e jovens que não terão acesso a informação contextualizada se não for a escola a proporcioná-la.
Provavelmente, a disciplina necessitará de uma revisão, até para que ganhe maior atenção por parte das escolas e se reforce o propósito para a qual foi criada: formar “adultos e adultas com uma conduta cívica que privilegie a igualdade nas relações interpessoais, a integração da diferença, o respeito pelos direitos humanos e a valorização de conceitos e valores de cidadania democrática”.
Quem está nas escolas reconhece as falhas que existem, que reflectem outros problemas que enfrentam: professores cansados, sem tempo nem energia para preparar estas aulas, poucos recursos para as tornar mais atractivas. “Qual é a formação, qual é o tempo, quais são as condições dadas a estes professores para leccionar estes conteúdos da Cidadania? Quase nenhuns. É um trabalho adicional, de sobrecarga”, observou o secretário-geral da Federação Nacional da Educação, Pedro Barreiros.
Muitos professores, notou ainda o sindicalista, acabam por deixar as “matérias mais sensíveis” para segundo plano, até porque conhecem os contextos em que trabalham. E deixou um recado: “Quando dizemos que queremos uma escola que é de todos, esta não é só dos professores, das direcções, dos alunos ou dos pais. É importante que estas decisões do currículo possam ser tratadas internamente e que haja menos Estado.”
O ministro da Educação, Fernando Alexandre, já disse que a revisão da disciplina se insere numa avaliação mais ampla que está a ser feita aos conteúdos curriculares. Mas que a sua continuidade não estará em risco, embora deva ser alterada porque há matérias que "não são consensuais" e têm gerado desconforto nalgumas famílias.
Enquanto se foca a discussão pública na revisão do currículo de uma disciplina, há 450 escolas a precisar de obras e milhares de alunos ainda continuam sem aulas.
Outros temas da semana:
- Carreira docente: com quotas na avaliação, Fenprof não fará acordo com o Governo
- Bloqueios à progressão foram uma constante na carreira dos professores
- Em Lisboa e no Algarve, os alunos chumbam duas vezes mais do que no Norte. Porquê?
Até quinta-feira!
Há mais para ler nesta newsletter. Subscreva aqui e receba-a todas as quintas-feiras no seu e-mail.