Público Brasil Histórias e notícias para a comunidade brasileira que vive ou quer viver em Portugal.
O livro que reúne 17 histórias da real das brasileiras em Portugal
Coletânia de 17 histórias mostra como mulheres brasileiras abriram mão de vidas até confortáveis no Brasil para construir sonhos em Portugal, que, em vários casos, foram carregados de pesadelos.
Os artigos escritos pela equipa do PÚBLICO Brasil são escritos na variante da língua portuguesa usada no Brasil.
Acesso gratuito: descarregue a aplicação PÚBLICO Brasil em Android ou iOS.
Era 2002, quando Cláudia Canto decidiu cruzar o Atlântico. Na Cidade Tiradentes, periferia de São Paulo, sonhava construir uma nova vida em Portugal, com a profissão que havia escolhido, o jornalismo. Mal sabia ela o que a aguardava. “A minha decisão de emigrar decorria do meu desejo de driblar as estatísticas da periferia onde morava”, conta.
Cláudia desembarcou no aeroporto da capital portuguesa cheia de esperança e muitos planos. Foram muitas as tentativas frustradas para se encaixar no mercado para o qual tanto estudou. Sem alternativa, acabou aceitando um trabalho como empregada doméstica. “Fui cair no século XVIII", diz.
O casal que a havia contratado — ambos da África do Sul — vivia em tempos feudais. "Para eles, uma empregada doméstica era um móvel, não podia sair nem para tomar um café”, afirma. Foram 11 meses naquele martírio. “Podia ter ido embora, mas decidi ficar para escrever a respeito da situação”, acrescenta.
O resultado disso foi o livro Morte às Vassouras, publicado em 2018, que, agora, está na sexta edição e, na terça-feira, 29 de outubro, será lançado na Itália.
Histórico de dificuldades
Foi a partir dessa experiência, que Cláudia criou o Riqueza Descoberta, projeto que tem como objetivo publicar histórias de brasileiras que vivem fora do Brasil. O primeiro dos trabalhos tem como título Entrelinhas — Histórias de Mulheres Brasileiras em Portugal, com relatos em português e inglês de 17 mulheres que deixaram o Brasil e, atualmente, vivem em terras lusitanas. O projeto conta com a parceria de Lau Nascimento.
Para encontrar as mulheres que contariam suas histórias, o caminho foram as redes sociais. "Tínhamos definido 15 mulheres, mas acabamos com 17”, conta Cláudia. É um primeiro passo, porque as duas não querem ficar apenas com esse livro. A meta é fazer mais uma obra com brasileiras em Portugal, depois, seguir para França e Alemanha.
Cládia e Lau ressaltam que, se o Riqueza Descoberta der lucro, parte dos recursos será destinada para obras sociais. Cláudia pretende apoiar cachorros abandonados e Lau, que é natural de Campinas, tirar crianças e jovens da marginalidade na região de onde veio.
As brasileiras assinalam as origens em ambiente desfavorecido. “Eu vim do Jardim Nova Maracanã, em Campinas, com meu marido para Portugal há seis anos. Queríamos ascensão financeira, cultural e fugir da insegurança do Brasil”, relata Lau, que era professora de educação física e fazia trabalho voluntário dando aulas de capoeira e futebol para crianças da situação de vulnerabilidade. Em Portugal, ela trabalhou em montagem de fibra ótica, foi vice-presidente da Associação Lusofonia, Cultura e Cidadania e, atualmente, é escritora e palestrante.
Primeiro, retrocessos
Uma das constatações das histórias coletadas por Cláudia e Lau é que, em grande maioria, as brasileiras que emigraram para Portugal tiveram de regredir tanto financeiramente quanto nas condições sociais. Abriram mão de conquistas importantes no Brasil para viverem as dores e as delícias de ser imigrante. No meio do caminho, viraram o jogo e se tornaram referências.
De todas as histórias contadas em Entrelinhas, a que mais comoveu as organizadoras da obra foi a de Andrea Miguel. Ela largou um escritório de contabilidade, do qual era proprietária, para seguir, com o marido, que tinha um bom emprego, o sonho de viver em Portugal e abrir um restaurante.
“Ela foi enganada, pagava de aluguel muito mais do que os preços de mercado. Um dia, um cliente veio e disse que ela cozinhava bem, mas nunca teria sucesso em Portugal por ser brasileira e negra”, relata Lau. O restaurante fechou.
Há, ainda, as histórias de Adryana Pinto, motorista de caminhão, que saiu de uma cidadezinha tão pequena, que nem aparece no mapa: Bacabal, no Maranhão; de Camilla Nobre, nascida em Croatá da Serra, interior do Ceará, que hoje trabalha com música, depois de passar um período em navios de cruzeiro; e da baiana Andreza de Sá Gonçalves, única negra numa escola de elite em Salvador, e que escapou de abusos no seu casamento.
Mais: a enfermeira aposentada Cristina Costa, de Wenceslau Braz, em Minas Gerais, depois da pandemia da Covid-19, queria conhecer o mundo e resolveu fazer de Portugal o seu ponto de partida para as viagens. A avó de Cyntia de Paula, atual presidente da Casa do Brasil de Lisboa, deixou o Nordeste brasileiro para fugir da seca, e hoje, a neta, psicóloga, dedica-se ao trabalho comunitário na capital portuguesa. A baiana Ellen Brito mudou-se para Portugal em busca de segurança para sua filha.
Histórias múltiplas
A multiplicidade de histórias registradas no livro impressiona. Vinda da periferia de São Paulo, Fernanda Uematsu já morou no Japão e decidiu atravessar o Atlântico para ter uma vida menos corrida, em que pudesse estar mais tempo com sua filha. De Campinas, Josy Nascimento, irmã de uma das organizadoras do livro, conta que já tinha emprego aos 12 anos de idade, fazendo serviços de escritório.
Luciene da Silva Santos, baiana, apaixonou-se pelo Porto numa viagem e optou por morar na cidade, onde tem um restaurante em que o acarajé, símbolo da terra dela, é a estrela. Também baiana, Luzia Santhana conta que teve uma carreira consolidada na televisão e era empresária, mas decidiu por Portugal por amor. Oriunda de Osasco, São Paulo, a aposentada Nilza Ramos começou num café limpando o chão para, em 15 dias, conquistar um lugar na cozinha.
Filha de um barbeiro, Ster Carvalho conseguiu seu primeiro emprego aos 12 anos de idade, dando aulas de datilografia. Formada em Pedagogia pela Universidade Federal de Goiás, quando chegou a Portugal foi engomadeira, faxineira, copeira, auxiliar administrativa, trabalhou em call center e, agora, dedica-se à escrita.
Formada em comunicação, Vilmária Santos sentiu que, no Brasil, uma negra nunca conseguiria um lugar como apresentadora de televisão. Ela relata que obteve uma das melhores notas da turma e, depois, mudou-se para Lisboa, onde trabalhou como vendedora e garçonete de um café. Em 2022, abriu sua agência de gestão de recursos humanos.