Rusga policial impede gravações de documentário numa festa em Lisboa. Organização fala em violência, PSP recusa
Produtora organizou uma festa para filmar um segmento de um documentário. O evento foi interrompido por uma operação que resultou na apreensão de droga. Organização fala em violência, mas a PSP nega.
Ao início ainda se julgou que fazia tudo parte das gravações para o filme. Quase 200 pessoas estavam reunidas no Planeta Manas, uma associação cultural no Prior Velho, em Loures, na passada sexta-feira, 18 de Outubro, para participarem numa festa gratuita em que seriam filmadas para um documentário que Tiago Hespanha, produtor e sócio da Terratreme, está a preparar sobre a noite. Mas o evento foi interrompido por uma rusga policial que os organizadores consideraram “agressiva, injustificada e ilegal” — mas que, segundo as forças de segurança, não registou incidentes.
Isso mesmo foi relatado pela produtora cinematográfica nas redes sociais e confirmado ao PÚBLICO por Tiago Hespanha e por dois membros do Planeta Manas, Inês Borges Coutinho e Miguel Martinho. Por volta das 1h40, quase duas horas depois de o evento ter começado, “a festa foi literalmente invadida por um esquadrão de intervenção rápida da polícia que tomou completamente o espaço”, contou o produtor de cinema. “Eles entraram, subiram ao segundo andar, ocuparam o espaço numa operação muito agressiva e confinaram todas as pessoas” — 188, nas contas da associação cultural — “à pista de dança”, relatou. Ninguém pôde entrar ou sair do espaço nas duas horas seguintes.
Segundo os organizadores do evento, os agentes chegaram “de cassetete em riste”, tapados com balaclavas pretas e equipados com coletes antibalas; e entraram no espaço com um “grau de violência e de brutalidade”. Aquela atitude, conta Inês, representava mesmo “um retrocesso em relação a outras visitas”, em que os agentes foram sempre respeitadores. Desta vez, verificou-se uma “desproporção naquela acção”, considerou Tiago. “Nenhuma das justificações que eles deram para aquilo explica aquele tipo de acção policial. Não havia nenhuma investigação criminal, eles não identificaram ninguém e revistaram toda a gente”, contou.
Um agente terá dito a Inês Borges Coutinho que a operação surgiu de uma denúncia anónima, mas outro afirmou que era uma rusga rotineira (havia uma discoteca na mesma rua a ser alvo de buscas) e um terceiro elemento da PSP terá dito que as autoridades estavam na associação porque “cheirava a ganza”. “Até começaram a descarnar as nossas fichas para ver se havia droga lá escondida, depois vieram dizer que éramos completamente irresponsáveis porque o espaço não era seguro e havia fichas descarnadas”, adiantou a responsável da organização.
Outras justificações terão surgido sempre que algum dos organizadores da festa procurava respostas junto dos agentes. O Planeta Manas está constituído como uma associação cultural sem fins lucrativos, apoiada financeiramente pelo Ministério da Educação e pela Direcção-Geral das Artes, mas um agente terá acusado os responsáveis de a utilizarem como fachada “para esconder outros negócios”. Mesmo depois de ter encontrado duas caixas com um total de 100 euros, e sem apresentar provas das suas suspeitas, o agente terá afirmado que a associação servia “para fazer dinheiro”.
Fonte oficial da PSP confirmou que a operação no Planeta Manas durante a festa da Terratreme foi uma fiscalização planeada “a dois estabelecimentos de diversão nocturna” — referindo-se à associação cultural e a uma discoteca vizinha —, mas recusa quaisquer casos de violência ou altercações: “Não existe registo de incidentes no decorrer da operação [no espaço, que acabou efectivamente por fechar cautelarmente por] falta de condições de segurança para os respectivos clientes.”
Mas Tiago Hespanha, organizador da festa através da Terratreme, acredita que a motivação por detrás da intervenção policial na festa não era de ordem criminal. Quando questionou o agente que o acompanhava sobre o motivo de estar ali, ele ter-lhe-á apresentado três justificações. Um era a crença de que o espaço não tinha condições para continuar aberto, tanto que o mesmo foi encerrado cautelarmente por “falta de condições de segurança para os respectivos clientes”, como confirmou a PSP. O outro tem que ver com o consumo de estupefacientes no interior do espaço.
Mas o produtor de cinema acredita que houve um motivo “moral” a pesar, uma vez que um agente lhe terá perguntado a certa altura: “Você gostava de ter um filho neste ambiente?” Tiago Hespanha, que nunca chegou a obter as filmagens de que precisava para o documentário, condenou este comentário: “Aquele espaço e aquela festa em particular era um momento e é um espaço que, se há valor que preza, é a liberdade. É a expressão da liberdade, individual e em colectivo. E o que aconteceu foi totalmente contrário a isso. Parece-me que essa expressão incomoda.” E prosseguiu: “Isto, além de mais, entristece-me profundamente porque não só não faz parte do filme, como o filme é o contrário daquilo.”
De acordo com as informações enviadas pelas forças de segurança ao PÚBLICO, a operação resultou na apreensão de 2156,3 doses de ecstasy, 31,46 doses de liamba, 70,44 doses de haxixe, 135,85 doses de cocaína e 0,43 doses de cogumelos alucinogénios. Há uma quantidade máxima definida para cada tipo de droga para que ela seja considerada para uso pessoal — que são de cinco gramas de haxixe e um grama de cocaína, por exemplo. Não é claro se as doses apreendidas pela PSP respeitavam esses limites legais.
A festa, intitulada de “Noite em Branco”, contaria com a participação de Tita Maravilha, vencedora em 2023 do Prémio Revelação Ageas do Teatro Nacional D. Maria II, e de três DJ ao longo da noite. Mas nunca foi retomada — o que, para Inês Borges Coutinho, pode representar uma lesão para o Estado, uma vez que as instituições organizadoras do evento são financiadas por dinheiro público. Questionados sobre os próximos passos, Miguel Morgado disse que os organizadores iriam reunir-se em breve para “decidir com mais calma o que é que faz sentido fazer agora”. “Toda a preparação que fizemos, o investimento que fizemos, não se cumpriu e foi um prejuízo grande”, acrescentou Tiago Hespanha. “Ainda não conversámos, mas tenho de perceber como é que vamos fazer isso.”