A Antropocénica está de volta e traz Glauber Rocha e Zé Celso
A terceira edição da trienal acontece em Cabo Verde, mas, numa passagem prévia por Lisboa, convoca-se o pensamento dos dois intelectuais brasileiros para o tema Terra: Resistência e Reexistência.
Depois de Portugal em 2022 e do Brasil em 2023, a trienal Antropocénica chega agora a Cabo Verde, o terceiro eixo deste projecto cultural e artístico com uma dimensão política de questionamento do papel da Humanidade no estado actual (e futuro) do planeta. Mas, antes disso, há uma passagem por Lisboa, com uma programação aberta ao público entre esta quarta e sexta-feira.
No centro desta programação estão duas importantes figuras da cultura brasileira – o cineasta Glauber Rocha (1939-1981), e o encenador, dramaturgo e actor Zé Celso (José Celso Martinez Corrêa, 1937-2023) – que estiveram em Portugal em 1974, tendo vivido aqui no exílio após a revolução de 25 de Abril, há precisamente 50 anos.
Nesta quarta-feira, entre as 16h e as 17h, haverá uma homenagem a Glauber Rocha na escadaria fronteira à Torre de Belém, em Lisboa, com a leitura dos dois manifestos escritos pelo cineasta (Uma Estética da Fome, de 1965, e Eztetyka do Sonho, de 1971), com a participação de Camila Mota, actriz e actual directora do Teatro Oficina, fundado por Zé Celso em 1958, em São Paulo, Brasil.
Na sexta-feira, encerrando esta passagem da Antropocénica por Portugal, antes de seguir para Cabo Verde, Camila Mota e membros do Teatro da Encruzilhada/Núcleo do Teatro Oficina farão uma performance nas ruínas do Teatro Romano, também em Lisboa, à qual se seguirá O Teatro do Mundo em Mutação – diálogos entre Camila Mota, Silvio Luiz Cordeiro, Dirk Michael Hennrich (filósofo e também organizador da Antropocénica) e as arqueólogas Lídia Fernandes e Maria da Conceição Lopes. A noite termina com um concerto (das 19h45 às 21h45) do UDJAT Ensemble.
A programação inclui ainda na quinta-feira a sessão Antropometrias, Ato de Fala- Ilustrado – Des-medir o humano em tempos de viés, húbris e transe (entre as 10h e as 11h), no Anfiteatro 1 da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; e uma Reunião Roda Viva (título inspirado na peça e canção de Chico Buarque, de 1967, tendo a peça sido dirigida por Zé Celso) com os temas Ruínas, Terra-Teatro, Muros e Travessias, e Resistência e Reexistência (entre as 16h e as 19h).
Nesta Roda Viva participam Camila Mota (Brasil), Catarina Martins (Portugal), Dirk Michael Hennrich (Alemanha), Filipe Ferreira (Portugal), Inocência Mata (São Tomé e Príncipe), Luanda Francine Garcia da Costa (Brasil), Maria da Conceição Lopes (Portugal), Marinho Pina (Guiné-Bissau) e Silvio Luiz Cordeiro (Brasil).
"Experiência transformadora"
Os organizadores da Antropocénica propõem-se “revelar a memória artística e de luta dessas duas figuras importantíssimas na história do cinema e do teatro, não apenas no Brasil mas no mundo”. O documentarista, arquitecto e editor brasileiro Silvio Luiz Cordeiro, um dos membros da organização, recorda que Glauber e Zé Celso “eram muito amigos e vivenciaram um período de violência em vários níveis, sobretudo durante a ditadura civil-militar no Brasil”.
Ambos acabaram por se exilar e “expuseram em narrativas muito potentes, o histórico sistema de dominação e de poder baseado nas formas de exploração colonial, cuja história esclarece os problemas que persistem até hoje, com ênfase no chamado Sul Global”. Daí a ligação com as temáticas que têm vindo a ser trabalhadas na Antropocénica, sublinha Silvio Cordeiro, que conheceu Zé Celso quando, entre 2000 e 2002, participou na adaptação de Os Sertões, o histórico livro de Euclides da Cunha, pelo Teatro Oficina. “Foi uma experiência transformadora para mim”, afirma.
Os Sertões continuam a ser relevantes para os debates de hoje, tal como os filmes de Glauber Rocha Deus e o Diabo na Terra do Sol, Terra em Transe, ou A Idade da Terra. “Toda a crítica que elaboramos durante a trienal Antropocénica está representada de diversos modos nestas obras: o Antropoceno como uma época de produção de ruínas, a exploração colonial, a escravatura, o extractivismo, o patriarcado, são questões centrais para nós”, diz Silvio Cordeiro.
Em 2024, no seu terceiro ano de existência, a Antropocénica apresenta como tema Terra: Resistência e Reexistência e, tendo o seu centro em Cabo Verde, pretende ligar algumas efemérides “como horizonte simbólico e reflexivo”: para além da Revolução dos Cravos de 1974, também o centenário do nascimento de Amílcar Cabral, em 1924, a independência da Guiné-Bissau (1973-74) e os 530 anos do Tratado de Tordesilhas, de 1494.
“Zé Celso não gostava muito do termo ‘resistir’ porque, para ele, apenas resistir era insuficiente, era algo paralisador”, explica Silvio Cordeiro. “Ele falava mais em ‘reexistir’, porque isso já eleva a potência para se transformar aquilo que precisa mudar. A ideia de reexistir traz outra energia, aponta outro engajamento e coloca o ser humano no limite da decisão: ou assume isso, a luta para transformar (e a resistência é uma força necessária), ou morre.”