Morreu Gülen, o poderoso líder religioso acusado de golpe para derrubar Erdogan
Inspirador de um movimento com milhões de simpatizantes na Turquia e nos países turcófonos, o pensador islâmico (e anti-islamismo) chegou a ter uma rede de escolas e universidades em quase 160 países.
Antigo aliado do Presidente Recep Tayyip Erdogan transformado em besta negra do seu regime depois da tentativa de golpe de Estado falhada de Julho de 2016, o líder religioso turco Fethullah Gülen morreu nos Estados Unidos, onde escolheu viver a partir de 1998. Tinha 83 anos.
Inspirador de um movimento, o Hizmet (serviço), com milhões de simpatizantes na Turquia e nos países turcófonos, Gülen chegou a ter uma rede de escolas e universidades em quase 160 países e um império mediático, controlando ainda associações profissionais e uma federação empresarial. A partir de 2016, em vez de Gülen e de Hizmet, a maioria passou a dizer FETO, a Organização de Terror Fethullah, sigla lançada pelos governantes e prontamente adoptada.
Gülen foi acusado de estar por trás do golpe travado na rua pelos próprios turcos e que fez 245 mortos e 2100 feridos, desencadeando uma purga nas forças de segurança, função pública, universidades, media, tribunais…
Em apenas uma semana, mais de 60 mil soldados, polícias, juízes, professores do ensino privado e funcionários públicos foram suspensos, detidos ou colocados sob investigação. Mas académicos insuspeitos de simpatizar com Erdogan e o seu AKP (Partido da Justiça e do Desenvolvimento, no poder desde 2002), pós-islamista, admitiam que o movimento estivesse tão infiltrado no Estado que esses números talvez se justificassem.
“Eu sei que parece estranho, nós também desconfiávamos de que eles [os gulenistas] tivessem tanto poder. Infelizmente, foi preciso um golpe e centenas de mortes para acreditarmos”, disse ao PÚBLICO o académico Sakir Dincsahin, dias depois do golpe, quando estava impedido de sair do país.
“Politicamente, não podia ser mais oposto ao regime de Erdogan. Mas se me perguntassem se há outra força política, social e conspirativa pior do que ele é Gülen”, afirmou na mesma altura Murad Akincilar, académico que coordenava o Instituto para os Estudos Políticos e Sociais de Diyarbakir e tinha passado dez meses na prisão por defender uma plataforma política turca e curda, democrática e de esquerda.
Na altura, uma grande parte da elite turca, da vida académica ao mundo empresarial, seguia os seus ensinamentos e tinha os filhos a estudar nas suas escolas e universidades – com uma qualidade indisputável, também eram frequentadas por muitos filhos dos líderes do AKP. Mas a purga acabou por se tornar caça à oposição e o estado de emergência pretexto para mais repressão.
Erdogan e Gülen cresceram em conjunto, mas foram-se afastando cada vez mais, à medida que os seus objectivos se tornavam incompatíveis: o primeiro, islamista, queria controlar o poder político, o segundo (anti-islamista) queria modernizar o islão, separar a política da religião e promover o diálogo inter-religioso. Ao mesmo tempo, era acusado por opositores de Erdogan de promover “uma guerra entre curdos e turcos”.
Já em 2014, dois anos antes do golpe, Gülen foi acusado de pertencer a um “grupo terrorista”, numa altura em que Erdogan o acusava de ter construído “um Estado dentro do Estado”, destinado a provocar a sua queda.
Desde o golpe falhado, ao mesmo tempo que o seu movimento era sistematicamente desmantelado, a sua influência internacional ia decaindo. Em 2005, os leitores das revistas Foreign Policy e Prospect tinham-no escolhido como “o intelectual mais influente do mundo” e em 2013, a revista Time considerou-o uma das 100 personalidades mundiais mais influentes.