“Se acender a luz, não morrerei sozinho”

Vivemos grande parte do nosso tempo em esferas individuais, indiferentes aos conflitos além das paredes das nossas casas.

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"Muitas vezes, a dor não está apenas no sofrimento em si, mas na invisibilidade do mesmo" Violeta Santos Moura/Reuters
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Passam poucos minutos das seis da manhã. Tiro um copo do armário e abro a torneira. Em poucos segundos, o copo fica quase a transbordar. Sem pensar em mais nada além de refrescar a garganta, levo o copo à boca e esvazio-o de uma vez. A água estava fresca. Soube-me tão bem que repito o procedimento. Dois copos de água ao acordar, nem imagina o bem que lhe fazia! Há quem a beba morna. E com umas gotas de limão. E até sal. Já o fiz. Enfim, umas vezes assim, outras vezes assado, os apetites não são matemática.

Abrir uma torneira e, em segundos, ter o copo cheio de água para beber.

No Líbano, “pelo menos 28 instalações de água foram danificadas pelo conflito, afetando o abastecimento para mais de 360 mil pessoas”, lê-se na página da Organização das Nações Unidas (ONU). “Os riscos para as crianças são graves. Sem acesso a água potável, elas enfrentam o perigo de contrair doenças transmitidas pela água, como cólera ou diarreia, que, sem tratamento adequado, podem resultar em desidratação e morte”, prossegue o comunicado, que li pouco depois de ingerir dois copos de água de forma automática.

“Estima-se que 400 mil crianças tenham sido deslocadas.” O comunicado refere as crianças libanesas, mas também poderia incluir crianças sírias e palestinianas. Crianças sem água, sem alimentos, sem casa, sem condições de higiene, sem roupa, sem livros, sem escola. Crianças feridas, órfãs, mortas.

Há esperança para estas crianças? —, pergunto-me, saciado, de copo vazio na mão.

Sento-me a escrever. Na mesa onde trabalho, há dezenas de livros. Um deles intitulado Poesia, uma edição de Vera Vouga que reúne a obra de Daniel Faria, poeta natural da freguesia de Baltar, no concelho de Paredes, onde está a ser criada uma casa-museu e um centro promocional da literacia e desenvolvimento pessoal, com base no maravilhoso pressuposto de que a humanidade pode fazer a diferença.

Puxo a etiqueta autocolante que assinala uma das páginas e releio “Mar Fundo”:

“Falta água.
Nas mãos em concha
Encalharam barcos”

Líbano, Palestina, Síria. Vidas encalhadas.

Acrescento outras vidas encalhadas noutras paragens, mesmo arriscando o apedrejamento: Israel, Ucrânia, Rússia. Enfim, a lista podia prosseguir. Haja bom senso e empatia.

Vivemos grande parte do nosso tempo em esferas individuais, indiferentes aos conflitos além das paredes das nossas casas, quando muito da nossa cidade ou país, até que uma faísca, sob a forma de notícia, de fotografia, de poema ou de um copo cheio de água, nos desperta para o contraste entre a segurança de um lar onde tranquilamente se bebe água fresca e a devastação em regiões onde as crianças sofrem, sem uma luz de esperança que lhes ilumine o caminho.

Abro outra página assinalada, “Pórtico”:

“Com os meus amigos aprendi que o que dói nas aves
Não é o serem atingidas, mas que,
Uma vez atingidas,
O caçador não repare na sua queda.”

Indiferença.

Muitas vezes, a dor não está apenas no sofrimento em si, mas na invisibilidade do mesmo.

Há esperança para estas crianças? —, pergunto-me novamente.

Nova página:

“Se acender a luz
Não morrerei sozinho”

Poderá a consciência partilhada inspirar uma responsabilidade coletiva e apelar a uma empatia global que dissipe a escuridão?

Tentemos. Gota a gota.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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