Entrámos no grupo de Telegram português onde 70 mil pessoas devassam a intimidade de mulheres
Milhares de fotografias íntimas de mulheres são trocadas sem consentimento num canal do Telegram com quase 70 mil utilizadores. A PJ fala em apenas quatro destes crimes identificados no Telegram.
O printscreen do perfil de Instagram de uma mulher cai no chat Porto: “Fácil de comer”, diz a legenda que acompanha a imagem. É mais uma de dezenas de mensagens que vão chegando a toda a hora aos diversos tópicos deste canal de Telegram, com mais de 66 mil participantes. Todos estão lá com um único propósito: trocar, de forma não consentida, conteúdo íntimo de milhares de mulheres.
O canal, que a revista digital NiT identificou em Agosto último, está organizado em dezenas de tópicos – As nudes que elas mandam; Gordinhas; Mãe e filha; Feia, mas até comia...; Tugas desconhecidas; Trans; Grávidas —, mas também por localidades, ou com os próprios nomes das vítimas, como uma espécie de arquivo onde podem ir sendo acrescentadas informações ou imagens.
Este — chamemos-lhe Grupo A — é apenas um das dezenas, se não centenas, de grupos semelhantes. Entrando num, vão surgindo links para entrar noutros, mais ou menos “acessíveis”. Geralmente basta um link de acesso ou o convite de alguém que já pertence a estes grupos. Mas para entrar no Grupo A é necessário enviar uma mensagem a um dos administradores. Assim fazemos. “Vinte euros”, responde. O pagamento é feito através de um código de levantamento MB Way. Dinheiro imediato e sem registo.
Ainda que este seja um dos mais requisitados, também encontrámos um Grupo B com cerca de 25 mil participantes, um Grupo C com dez mil, um Grupo D com dois mil, um Grupo E com 200... Até que desistimos de entrar em grupos novos. A lista parece ser interminável quando se começa a procurar. E, ao longo das últimas semanas em que nos infiltrámos nestes grupos, os convites para outros não pararam de surgir.
Em todos eles o conteúdo e o procedimento é o mesmo: são enviados vídeos ou fotografias e seguem-se os comentários dos restantes, degradantes e sexualizados, assim como pedidos de “histórias” sobre as vítimas. “O que mais gostaste? Comenta o que fazias!”, incentiva um dos participantes, depois de partilhar uma fotografia.
Além de nudes, são também enviadas fotografias retiradas das redes sociais das vítimas, para pedir informações, mais conteúdo íntimo ou, simplesmente, comentar. “Desta, alguma coisa?”, “Alguém tem vaquinhas da UTAD?”, “Onde posso encontrar esta?”, vão perguntando. “Quem andar a comer esta menina tem uma bela puta”, respondem. As conversas podem também passar do chat geral para uma janela privada, caso os intervenientes tenham interesse em “partilhar histórias ou falar sobre” alguma das vítimas ali expostas (“Alguém para falar desta porca?”), ou para “trocar conteúdo” (“Alguém para trocar cenas da irmã?”), como se de uma caderneta de cromos se tratasse.
Um dos tópicos mais populares dentro do canal, com mais de 11 mil mensagens trocadas, chama-se voyeur. Serve para enviar fotografias tiradas a mulheres na rua, nos supermercados, nos transportes públicos, no ginásio, na bomba de gasolina, na praia ou em qualquer outro lugar onde estejam e sem que elas se apercebam. Aqui é também comum encontrar imagens tiradas por baixo das saias, o chamado upskirting, que é crime em países como Inglaterra, Escócia, Austrália e Nova Zelândia, mas não em Portugal.
Os milhares de participantes são incentivados a criar novos tópicos e a “partilhar conteúdo” activamente. Os próprios administradores impulsionam o envio de fotografias, se perceberem que algum dos chats está sem novas mensagens há algum tempo. Afinal, estão ali “todos para o mesmo”, como sublinha um participante: “Não tenho problema algum em partilhar as cenas com o grupo. Estamos cá todos pelo mesmo.”
O “mesmo” a que esse utilizador se refere é crime. Em 2023, foi reforçada a protecção das vítimas da disseminação não consensual de conteúdos íntimos. As penas previstas para o crime da devassa privada foram actualizadas, passando a ser possível a pena de prisão até cinco anos para quem “disseminar ou contribuir para a disseminação” não consentida de “imagens, fotografias ou gravações que devassem a vida privada das pessoas, designadamente a intimidade da vida familiar ou sexual”.
Ainda que a imagem tenha sido obtida de forma legítima — enviada pela vítima, captada com o seu consentimento, ou qualquer outra —, a partilha não consensual da mesma é sempre crime. “Um exemplo paradigmático” é a partilha de conteúdo íntimo após o fim de uma relação, aponta Tomás Grencho, jurista da Linha Internet Segura, que recebe denúncias e presta auxílio a vítimas, da qual a APAV, entre outras instituições, faz parte.
Este comportamento é, muitas vezes, conhecido como “revenge porn” (algo como “pornografia de vingança”), mas investigadores e activistas defendem que este termo é errado por várias razões, como alerta a associação Não Partilhes: implica que “tirar uma fotografia de si próprio envolvido num acto sexual é pornográfico” e pressupõe que há “um dano original pelo qual o autor do crime deve retribuição”. Coloca o ónus na vítima, quando — vale lembrar — a culpa nunca é da vítima.
Quando sair de casa é “um tormento”
De um dia para o outro, o Instagram de Núria Silva tornou-se um lugar esquisito. Os pedidos para seguir e as mensagens “estranhas” de desconhecidos foram o primeiro alerta para a notícia que um amigo lhe daria depois: havia vídeos íntimos seus num grupo deste tipo, onde estavam pessoas da sua faculdade.
“Na altura, andava com um rapaz e gravámos uns vídeos e fotos, só para partilharmos entre nós, no Instagram”, relata a jovem de 26 anos. Mas a suspeita é que alguém conseguiu aceder à sua conta — como mais tarde confirmou a PJ — e, à partida, terá sido essa pessoa quem divulgou as imagens.
Um dos muitos problemas deste crime é que, quando as imagens começam a ser difundidas, não há muito a fazer. É como tentar parar o vento com as mãos. No caso de Núria, do WhatsApp as imagens passaram para o Telegram e até para o Pornhub. “Eram aquelas fotografias e vídeos, inicialmente; depois, deixaram de ser imagens minhas e punham outros vídeos a dizer que era eu, iam buscar fotografias normais que eu metia no Instagram e sexualizavam imenso”, recorda. “Na altura, vi printscreens de conversas deles. Apostavam como conseguiam estar comigo, diziam que depois partilhavam as coisas. Era um nojo.”
Para Núria, “a vida acabou naquele momento”. Sair de casa tornou-se um tormento, porque significava ter de lidar com aquela sensação de que estava toda a gente a olhar para ela (“O que na verdade não acontece”, percebe agora, quatro anos depois). Acabou por sair da faculdade e ficar três meses de baixa. Valeu-lhe o apoio dos amigos e da família — mas não é assim com toda a gente, lamenta.
As mensagens não paravam de cair: “Recebia mais de 20 mensagens por dia de pessoas que não conhecia de lado nenhum a perguntar quanto cobrava e a fazer chantagem. Diziam-me que se não mandasse mais coisas iam contar à minha família ou mostrar aos meus colegas de trabalho. Também ameaçavam partilhar tudo o que tinham, caso não lhes desse dinheiro. Nunca cedi a nenhuma.”
E esta é a coisa certa a fazer. “Nunca pagar”, avisa Tomás Grencho. Em casos de tentativa de extorsão sexual, o jurista aconselha a “terminar imediatamente o contacto” com o perpetrador, reunir todas as provas possíveis” e, novamente, “nunca pagar”. Ao ver que a vítima tem capacidade financeira, [o perpetrador] vai continuar a “estrangulá-la”, entrando assim num “ciclo vicioso”. “Não é por pagar” que a outra pessoa irá parar com a chantagem, alerta.
Alguns dias depois, Núria conseguiu motivar-se e ir fazer queixa às autoridades. Dirigiu-se à PSP, que entregou o caso à Polícia Judiciária, e, cerca de um ano e meio depois do sucedido, o caso foi encerrado. Quatro pessoas que a ameaçaram foram condenadas a pagar uma indemnização de 180 euros por tentativa de extorsão. Quanto às imagens, nunca se soube quem as roubou e partilhou.
O “gozo sexualizado”
“Nada disto é radicalmente novo”, começa por enquadrar a investigadora Maria João Faustino. “Vamos tendo conhecimento destas realidades há algum tempo e isto deve ser enquadrado como mais uma expressão de misoginia e sexismo profundo. O online veio criar uma nova avenida, ou seja, a violência contra as mulheres não migrou [para lá] — cresceu.”
A Internet é, além de mais um local para perpetrar violência, um sítio onde ela é mais fácil e, até, onde pode passar mais despercebida: “A facilidade da propagação de imagens, o potencial anonimato, o efeito de 'gamificação' e virtualização — parece que há uma desmaterialização das coisas...”, aponta a investigadora. Todos estes factores “potenciam a desresponsabilização dos perpetradores”, dentro de uma cultura que tende a “normalizar e banalizar” a violência contra as mulheres.
Quando falamos destes canais, não estamos a falar apenas de troca de nudes ou vídeos explícitos de sexo; estamos a falar também de fotografias tiradas à televisão, a jornalistas, apresentadoras e actrizes, imagens comuns, do dia-a-dia, sobre as quais não se diria, à partida, serem objecto de gratificação sexual. Porque isto não se trata (só) de gratificação sexual.
Estes canais são também uma forma de “afirmação entre pares, através do rebaixamento das mulheres”. “Humilhar, mesmo que elas não estejam a ver. Pontuar. Objectificar. Tudo isso faz parte de uma cultura de gratificação que não é necessariamente sexual, mas é sempre sexualizada”, explica a investigadora. “Gozo sexualizado — a masculinidade construída como qualquer coisa que é superior à feminilidade e às mulheres.”
Para Inês Marinho, da associação Não Partilhes, o anonimato é talvez “a única coisa” que vê a mudar de há uns anos para cá. Quando começou a prestar atenção a estes grupos, em 2019, e depois de também ter visto imagens suas difundidas na Internet, “uma grande percentagem dos homens que lá estavam mostrava a cara”.
Depois da criminalização, o panorama começou a mudar e “o sentimento de impunidade está a diminuir”, afirma. E isso vê-se nos grupos de Telegram. No chat geral, surgem os avisos: “User 1234567 changed name from Daniel Silva to D12345” (dados fictícios). Já o conteúdo continua igual, defende. “Quando eu entrei nos grupos, já partilhavam fotografias em balneários, por exemplo. E sempre houve mulheres a serem fotografadas sem se aperceberem.”
A associação quer “consciencializar e mostrar às pessoas que isto é uma realidade”, assim como prestar auxílio a vítimas deste crime. A sua acção passa também por ir a escolas alertar e sensibilizar jovens.
À Não Partilhes, “não há uma semana que não chegue uma queixa”. Quase todas têm incidido sobre o Telegram, o que dificulta a acção. “Quando vai parar ao Telegram, é muito difícil”, lamenta Inês Marinho. Apesar das denúncias que já fez na plataforma, acabou por “receber um email dois ou três dias depois a dizer que não se passa lá nada de ilegal”.
Questionado sobre o tema pelo P3, o Telegram foi evasivo. Disse combater “activamente conteúdos prejudiciais, incluindo pornografia ilegal”. A plataforma garante utilizar “uma combinação de monitorização proactiva de partes públicas da plataforma, ferramentas de IA e denúncias de utilizadores para remover conteúdo que viole os termos” da aplicação.
Referiu ainda cumprir o Regulamento dos Serviços Digitais da UE e oferecer “canais obrigatórios para as autoridades da UE emitirem solicitações de remoção”. Recentemente, e depois da detenção do CEO da empresa, o franco-russo Pavel Durov, que foi acusado de vários crimes de auxílio a actividade criminosa, o Telegram decidiu passar a ceder endereços IP e números de telemóvel dos utilizadores sempre que haja pedidos judiciais válidos, uma mudança na política de privacidade que era a bandeira da empresa (e que também era, por isso, terreno fértil para pirataria, imagens de abuso sexual a crianças ou tráfico de drogas).
Por cá, houve projectos relacionados com o tema sujeitos a votação na Assembleia da República esta sexta-feira. Depois de ter sido tornada pública a existência destes canais, o PAN apresentou um projecto de resolução pela aprovação de medidas de prevenção e combate à violência sexual com base em imagens.
O PAN recomendou que este tipo de violência seja tida em conta nas “políticas públicas para a juventude, prevenção e combate à violência contra as mulheres e tráfico de seres humanos” e que seja levada a cabo uma campanha nacional “de combate e prevenção da violência sexual baseada em imagens”, bem como um estudo nacional sobre a incidência deste fenómeno em Portugal e a divulgação periódica de dados estatísticos.
Por último, sugere a existência de acções de formação para “magistrados e outros agentes de justiça, a profissionais das forças e serviços de segurança, profissionais de saúde, psicólogos em meio escolar ou assistentes sociais”.
Também o PCP avançou com um projecto de resolução que assenta em medidas de prevenção através da sensibilização para o problema, quer dos agentes educativos, quer com formação específica para magistrados, profissionais das forças e serviços de segurança e profissionais de saúde. Ambos os projectos de resolução foram aprovados.
O Bloco de Esquerda levou a debate um projecto de lei para que a divulgação de imagens íntimas sem consentimento passe a ser crime contra a liberdade sexual e público, podendo a queixa ser feita por qualquer pessoa. Também o Livre quer um projecto de lei que preveja a criminalização da ciberviolência, prevendo pena de prisão até um ano ou pena de multa para "quem adoptar, de forma reiterada, comportamentos de ameaça ou coacção, através de tecnologias da informação e da comunicação, contra pessoa ou grupo de pessoas, fazendo-a, justificadamente, temer pela sua segurança ou das pessoas a seu cargo". Ambas as iniciativas baixaram à Comissão de Assuntos Constitucionais, sem votação, e ficarão agora em discussão pelos deputados.
Os agressores são “monstros”?
Nas últimas semanas, veio a público a história de Gisèle Pelicot, a francesa de 72 anos que, durante uma década, foi drogada pelo marido, Dominique Pelicot, que depois recrutava homens online para a violar. Cinquenta estão acusados.
Para Maria João Faustino, este caso mostra “um caminho que ainda não fizemos”: “O de perceber que o homem que viola e agride as mulheres pode ser qualquer um.” A ideia de que o agressor é um “monstro”, de que o violador é “um homem muito feio, socialmente inapto, de uma baixa condição social”, é enganadora e deve ser desconstruída.
Não se trata de “uma aberração estatística”. É que, num só grupo de partilha de conteúdo sexual não consentido, estão 70 mil homens, “um estádio de futebol inteiro”, e um dos tópicos mais activos chama-se “Esposas”. Nos outros canais semelhantes, há variações do mesmo: “Família” ou “Espiar em Casa”, por exemplo.
Os nomes são auto-explicativos. Servem para enviar fotografias ou vídeos das esposas, namoradas, mães, irmãs, primas... As imagens vão desde nudes ou vídeos sexualmente explícitos, a fotografias tiradas a mulheres a tomar banho, a limpar a casa, a cozinhar, a pentear o cabelo em roupa interior, a vestirem-se, ou qualquer outra actividade que acontece no dia-a-dia de todos, na intimidade das casas.
É possível perceber que, na grande maioria dos casos, as vítimas não fazem sequer ideia de que estão a ser fotografadas — por vezes, estão a dormir. “Logo à noite partilho fotos da mulher a dormir, tiradas na hora, a quem partilhar também”, escreve alguém. Certamente não estarão neste canal apenas “homens muito feios, socialmente inaptos” e com todas as outras características que atribuímos aos agressores no imaginário.
“Obviamente que sabemos que existem homens que não cometeram ou não cometerão [crimes], a discussão não é essa. Mas a questão é que todo o tipo de homens, em todo o tipo de circunstâncias e com todo o tipo de perfil é capaz de cometer violência sexual”, diz Maria João Faustino. “O imaginário do monstro é muito confortável para nós, mas depois ficamos em choque quando vemos que foi o marido que a violou e drogou [a Gisèle Pelicot], que os agressores têm filhas...”
O online potencia ainda mais esta “desresponsabilização e desvalorização” da violência: “Há uma ideia de que como não há toque, como não há agressão física, é uma coisa mais secundária, mas a literatura e o debate entre investigadores mostra que é possível agredir alguém partilhando imagens. O que está ali a ser violado é a autonomia sexual da pessoa, e isso é ferido mesmo sem contacto [físico].”
A inteligência artificial e a violência sexual
A inteligência artificial veio também trazer novas dimensões a este tipo de agressão sexual. “Há poucos anos, era preciso um conhecimento especializado para adulterar ou criar uma imagem”, enquadra a investigadora. Agora, há plataformas que criam imagens artificialmente, sem que seja preciso qualquer conhecimento tecnológico. Para Maria João Faustino, é a “democratização do abuso”.
Nestes canais de Telegram há também chats apenas para este efeito. “Preciso de alguém que me faça uns fakes, se me puderem ajudar agradecia”, pede alguém. A seguir, uma imagem onde alguma mulher aparecia perfeitamente vestida, passa a ser uma nude ou um vídeo sexualmente explícito. São as chamadas deepfakes — ainda que a investigadora evite esta terminologia, por ter nascido no Reddit e “algumas vítimas não se reverem nela”.
A grande questão em relação à propagação destas imagens — e sabendo que qualquer mulher pode ser vítima — é que “não há nada que as mulheres possam fazer em termos de precaução”. Aqui, a ideia de que é preciso ter “cuidado com o que se envia ou publica” é “inútil”, porque um retrato partilhado no Facebook, uma fotografia profissional no LinkedIn, uma fotografia de grupo publicada no Instagram, são suficientes para criar este tipo de conteúdo que, por não ser verdadeiro, não é menos danoso.
“Quando falamos de imagens adulteradas, há ainda mais uma camada de desvalorização, porque a imagem nem sequer é real. Mas o que a investigação tem mostrado é que, para as vítimas, é irrelevante se a imagem é verdadeira, porque o impacto está lá. Quem vê não quer saber se é verdadeira ou não, o efeito do gozo, da humilhação, está lá.”
Para a investigadora, “não estamos a falar o suficiente deste assunto, nem a ter a resposta política que ele merece”. A aprovação da directiva comunitária, em Maio último, para combater a violência contra as mulheres, onde consta a criminalização do assédio online e a partilha não consentida de imagens íntimas é, para Maria João Faustino, um passo importante, mas continuamos a “correr atrás do prejuízo”.
Estes canais de Telegram têm, contudo, passado despercebidos. A Polícia Judiciária (PJ) só identificou quatro crimes de devassa da vida privada nesta plataforma. “Não foi aberto nenhum inquérito. Uma vez que a expressividade foi tão pequena, não houve necessidade de inserção de elementos mais específicos”, refere a PJ.
Mas se os casos sinalizados pela PJ não são “expressivos”, o mesmo não acontece na Linha Internet Segura. Em 2023, foram registados 102 casos de extorsão e 48 de devassa da vida privada. As denúncias que chegam a esta linha podem não representar, no entanto, “a magnitude do problema”. “Muitas vítimas não têm sequer noção” que há imagens íntimas suas a circular. E ainda que seja “importante que as pessoas apresentem queixa-crime”, contar a sua história “pode ser um processo bastante doloroso para as vítimas”, salvaguarda Tomás Grencho.
A masculinidade e a cumplicidade
Falar sobre masculinidade, sobre violência contra as mulheres e “desconstruir papéis de género de forma consistente”, questionar a “cumplicidade masculina”, que fecha os olhos a agressões, são passos cruciais rumo à mudança de paradigma.
A educação sexual deve “começar mais cedo” e ser adaptada aos contextos: “Não faz sentido abordar a educação para a sexualidade como há dez anos. Esta conversa tem de incluir violência sexual baseada em imagens online, discursos de ódio online, o que significa consentimento, o que significa autonomia sexual, o que é ser hoje uma mulher na cultura digital.”
Nas acções de sensibilização que faz nas escolas, Inês Marinho diz assistir a uma grande regressão no que toca a igualdade de género junto dos alunos mais novos, principalmente abaixo dos 14 anos.
Fenómenos de popularidade como Andrew Tate — influencer conhecido pelas suas posições misóginas e em prisão domiciliária por suspeitas de tráfico humano, abuso de menores, entre outras, e que diz que “as mulheres são para ter filhos, ficar em casa, estar caladas e fazer café”—; a cultura incel (celibatários involuntários, que odeiam mulheres por não se conseguirem relacionar com elas); e a popularidade da direita radical populista nas redes sociais podem estar a levantar desafios aos progressos feitos rumo à igualdade de género.
Para Maria João Faustino, a culpa recai também sobre a pornografia, que “industrializou a visão da mulher como objecto consumível”. “Muitas vezes, os jovens têm acesso a pornografia antes de terem relações sexuais, e acabam por ser expostos a um imaginário que é muitíssimo agressivo e banaliza a violência contra as mulheres.”
“É importante dizer aos homens que uma mulher não vale mais ou menos por estar despida. [Em muitos dos vídeos partilhados] o homem também está lá. Também está nu. Mas a mulher é que é comentada”, diz Inês Marinho.
Dois anos depois de as imagens íntimas de Núria Silva terem sido partilhadas, o seu namorado da altura recebeu-as: “Já viste que a tua namorada é prostituta?”, escreveram-lhe. “Não foi só uma pessoa a enviar-lhe, foram várias.”
Núria diz ter aprendido a “lidar com a situação” e a torná-la uma “força para ajudar outras pessoas”. “Eu sei que não fiz nada de errado, mas às vezes ainda tenho algumas dúvidas quando algum rapaz começa a falar comigo. Penso que ele viu os vídeos. Ainda assim, consegui superar.”
Ajudar outras pessoas também a ajudou a ultrapassar — foi por isso que se juntou desde o início da sua criação à Não Partilhes. Transformou o sucedido “numa força” para aconselhar e ajudar quem está a passar pelo mesmo.
O que sugere às vítimas que a abordam, desde logo, é: “Partilha com alguém que está ao teu lado. Partilhar com uma desconhecida é fácil; [ou então] conta à tua amiga, à tua irmã. Quando estas coisas acontecem, parte da nossa vida é a tentar que as pessoas não descubram e é isso que os outros acham que podem [usar para] fazer chantagem. Quando contamos a alguém, acabamos com esse poder.”
Ainda que “não seja um dever pedir ajuda”, como relembra Maria João Faustino, é importante que as vítimas saibam que há associações que as podem ajudar. Além da Não Partilhes e da Linha Internet Segura, também a Associação de Mulheres Contra a Violência pode prestar auxílio.
A Linha Internet Segura tem também uma parceria com algumas plataformas e pode sinalizar imagens que circulam sem consentimento e impedir a partilha ou até fazer com que sejam removidas. O Telegram não faz parte da lista de parceiros, mas outras, como o Instagram ou o Facebook, fazem.
E mesmo que nem todos os homens que estão neste canal partilhem imagens, mesmo que alguns sejam “espectadores passivos”, todos são “cúmplices” de um crime. “São os consumidores”, lembra Núria. “A culpa é de quem escolhe participar ou de quem encolhe os ombros”, sublinha Maria João Faustino: “Durante demasiado tempo temos culpado as vítimas e não temos colocado a responsabilidade onde ela deve estar.”