Camões no século XXI: uma leitura contemporânea de um clássico
Camões, ao olhar e à leitura do Portugal contemporâneo, é um murro no estômago contra o imobilismo, contra a apatia, contra os tradicionalismos e os nacionalismos que apenas glorificam o passado.
Camões transformado em mito
Falar sobre Camões é tudo menos objetivo. Estranhamente, o que mais objetivo se pode dizer de Camões é no campo da poesia, talvez o mais subjetivo dos campos literários. Os escassos dados que temos da sua vida alimentaram ao longo dos séculos variadíssimas lendas que remetem Camões quase para o papel literário e não histórico, um papel no campo do mito.
Bastará, a título de exemplo, recordar que um dos episódios mais popularizados da sua vida — o naufrágio em que o poeta, com um braço fora de água, salva o manuscrito dos Lusíadas — só pôde fazer carreira, e ser tido como verdadeiro, numa sociedade de supostos marinheiros onde, afinal, poucos tinham vivido uma tempestade no mar. Obviamente o exercício de numa tempestade manter um braço de fora, conseguindo deixar seco o manuscrito, é do campo do irreal e do mitológico, do ficcional, não de algo que tenha acontecido, por tão impossível que é.
Da mesma forma, a aproximação do séc. XIX ao modelo dos génios abandonados — em que o caso mais paradigmático é o de Mozart — aportou à figura de Camões uma dramaticidade tipicamente romântica, mas, tal como no caso de Mozart, relativamente fora da realidade que as fontes hoje nos comprovam. Sozinho, abandonado, ostracizado e maltratado são peças mais do mito do que da História.
Esta queda para a lenda, este resvalar para o discurso mitológico, que corresponde a uma fraca existência de um Camões histórico, é a sua maior riqueza hermenêutica. A própria vida do poeta apresenta-se como uma extensão da sua lírica em que, quase nada se sabendo do seu nascimento, muito intuímos das suas paixões.
Aliás, as personagens da sua vida que nós mais conhecemos não são os seus pais ou os seus familiares, mas sim as suas paixões e as suas amantes, de quem por vezes conhecemos detalhes pormenorizados que o poeta semeou ao longo dos seus poemas. É como se para Camões a vida e o mundo fossem um complexo em que a palavra “paixão”, nas suas múltiplas dimensões, é o motor de toda a vida.
Camões como identidade nacional
Esta dimensão tão incerta da factologia histórica, cruzada com a intensidade das paixões, onde tanta vez a crítica social, seguindo o modelo bíblico, surge espelhada na descrição dos amores falhados, conduzindo a receção dos seus textos ao campo do político e do ideológico. A paixão é também imagem da relação com o mundo, com o destino que integra o homem no global e social.
A relação de Camões com as suas paixões colocam-no em si, mas também fora de si. Os amores — sempre desfeitos, não concretizados — foram o material pleno para construir em Camões uma aura de missão a que os Lusíadas deram forma acabada, lendo-se a figura do poeta quase que num heguelianismo em que simultaneamente o poeta retratava a história e a identidade nacional, sendo ele próprio a ideia de Portugal. Os nacionalismos — influenciados pela ideia do filósofo Hegel, em que um indivíduo representa o todo — viam em Camões o anti-herói perfeito.
É a assunção desta função identitária que vai transformar Camões — enquanto personalidade, mais até do que a sua obra — num espelho no qual a sociedade portuguesa se vê.
Naturalmente, à medida que o sistema escolar português se foi construindo, Camões tornou-se peça central dos conteúdos escolares a transmitir às gerações vindouras. Há pelo menos dois séculos que todos os portugueses estudam Camões, com tudo o que isso tem de obrigatoriedade e consequente repulsa, e de aproveitamento ideológico pelos mais variados regimes. A sua natureza enquanto mito deu a Camões a plasticidade necessária para no identitário ser “o poeta zarolho que escrevia versos para a Amália”, ao mesmo tempo que era o símbolo mais icónico do culto a um glorioso passado durante a ditadura de Salazar.
Mas essa plasticidade vai muito mais longe quando, no último quartel do séc. XIX, tem lugar, literalmente, uma disputa entre monárquicos e republicanos para ver quem se afirma popularmente como mais nacionalista, organizando os mais sumptuosos festejos no centenário da morte do poeta. Tal como hoje alguns setores mais conservadores da sociedade portuguesa acusam o Governo que agora terminou funções de não ter organizado uma comemoração digna para os 500 anos de nascimento do poeta, também em 1880 o regime monárquico foi acusado de fazer o mesmo, deixando um espaço vazio que foi amplamente ocupado pelo movimento republicano que, assim, tomou a dianteira das comemorações, afirmando-se perante a população como mais nacionalista, mais fervoroso, mais próximo da essência nacional, criando uma narrativa de decadência que era colada à monarquia de Bragança.
Mas esta plasticidade iria mais longe. Se, em finais do séc. XIX e durante a I República, Camões foi apanágio das forças políticas ditas “progressistas”, o regime político que viria a seguir, profundamente conservador, continuaria a usar a figura de Camões, agora adaptando-a à gesta gloriosa que queria enaltecer.
Regimes diametralmente opostos em termos políticos encontraram no poeta quinhentista material para as suas utopias e para suas ideologias.
Trazendo a questão para a atualidade, a equação torna-se objetiva e urgente: o que resta de Camões para um regime democrático assente num multipartidarismo e na inclusão?
O sentido e a missão
Apesar de haver um Camões usufruído pelas mais variadas correntes nacionalistas — especialmente devido a Os Lusíadas —, o que possivelmente é de maior significado poético não é a epopeia de glorificação pátria por todos conhecida, mas a lírica. Tal como podemos dizer que Fernando Pessoa não é e muito menos se esgota n’A Mensagem, da mesma forma o que mais impressiona o sensível leitor que se debruce sobre a obra camoniana não é os Lusíadas.
A obra lírica de Camões é um percurso na vida de um poeta renascentista, marcado pelas agruras, mais do que da vida, dos amores. Num jogo entre a sua biografia, as biografias das amadas, e as imagens que esses amores criam na crítica social que está sempre presente nas entrelinhas. Camões não hesita em colocar o dedo nas feridas da hipocrisia, nos plásticos e enganadores hábitos sociais, na bajulação e no servilismo das hierarquias.
Como exemplo, vejamos o folheto anónimo — Disparates da Índia — que circulou por Goa aquando da sua estadia na Índia, e cuja autoria lhe foi atribuída:
… Achareis rafeiro velho
Que se quer vender por galgo:
Diz que o dinheiro é fidalgo
que o sangue todo ele é vermelho…
Mais do que um poeta de um romantismo ainda com um certo toque do galanteio que herda das cantigas medievais, Camões recentra a paixão no humano, na definição do próprio indivíduo, trazendo a dimensão trágica do teatro clássico. Nesse sentido, Camões é um humanista.
Recuperemos o conhecidíssimo poema Erros meus, má Fortuna, Amor ardente:
Erros meus, má Fortuna, Amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a Fortuna sobejaram,
Que para mim bastava Amor somente.
Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que as magoadas iras me ensinaram
A não querer já nunca ser contente.
Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa (a) que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.
Eros como motor do movimento
No sentido que nos mostra o seu profundo conhecimento da cultura clássica, a atração é para Camões a força que tudo coloca em movimento, tal como o Eros o era para algumas cosmogonias gregas.
Vejamos a écloga Amor é um brado afeito:
Amor é um brado afeito
Que Deus no Mundo pôs e a Natureza
Para aumentar as coisas que criou.
De amor está sujeito
Tudo quanto possui a redondeza;
Nada sem este efeito se gerou.
Por ele conservou
A causa principal o Mundo amado
Donde o pai famulento foi deitado.
As coisas ele as ata e as conforma
Com O Mundo, e reforma
A matéria. Quem há que não o veja?
Quanto meu mal deseja, sempre forma.
É a transposição — quer para a dimensão cosmológica, quer para a antropológica — da máxima que possivelmente melhor resume a sua visão do mundo: “Todo o mundo é composto de mudança.”
Nada em Camões é estático ou encerrado; seja na visão da História de Portugal, com os momentos marcantes de mudança de paradigma, que encontramos em episódios como o Velho do Restelo, ou a forma como apresenta a inevitabilidade das suas paixões terminarem e se sucederem. Para Camões, o devir é, claramente, a forma natural do mundo se apresentar aos humanos.
Vejamos o soneto Busque Amor novas artes, novo engenho:
Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
andando em bravo mar, perdido o lenho.
E é nessa ideia de constante mudança, seja ela aplicada ao viver de um indivíduo, seja ela representada num coletivo a que se chama “reino”, que a dimensão da missão ou do sentido ganha um relevo de grande importância.
Recuperando, mais uma vez a sua cultura clássica, n’Os Lusíadas, Camões usa divindades latinas a seu bel-prazer para criar esse sentido: os portugueses desafiam uma ordem estabelecida, e essa mesma ordem, através dos seus deuses, como que desafiam os marinheiros lusos a comprovarem a sua audácia.
Naturalmente, Camões não era pagão e certamente não acreditaria que a deusa Vénus ou o deus Marte agiam da forma como o poeta relata no texto. Mais do que a influência e o desejo de imitar a Eneida de Virgílio, o uso deste substrato pagão era o mecanismo para ligar a gesta dos portugueses a um sentido, a uma quase missão, que lhes era superior. Neste sentido em que os marinheiros portugueses desafiavam a própria ordem dos deuses, eles não apenas viviam no tempo, mas eles construíam o tempo.
Que futuro para o património Camões?
Chegamos à questão crucial que na contemporaneidade se coloca a qualquer comemoração que marque o passado coletivo: que fazer com este património? Isto é, na dimensão complexa do seu percurso histórico, naquilo em que ele nos toca hoje, para que serve Luís Vaz de Camões?
No sentido de uma abordagem tradicionalista à ideia de património e de cultura, Camões vale por si mesmo, pela qualidade do seu trabalho e pelo lugar que lhe foi sendo dado ao longo das gerações.
Contudo, esta definição de cultura e de património em nada é hoje pertinente e obrigar-nos-ia a descer a um patamar em que apenas a fruição teria lugar. Hoje, a cultura é dinâmica, as barreiras e as definições quebram-se, a inovação é valorizada.
O clássico já não é apenas o que foi transposto para lá do tempo presente e, por isso, ganhou o seu lugar na “classe”, mas é aquilo que nos interroga constantemente, que nos afeta e nos inquieta, que nos obriga a sair do espaço de conforto, como se aquilo que o poeta disse há quase 500 anos fosse a chave para nos compreendermos hoje.
Se a obra de Camões for “apenas” esteticamente sublime, ela foi importante, mas foi “apenas” isso mesmo: uma obra que se esgotou e que retratamos através do tempo verbal a que chamamos pretérito. Mas, de forma assustadoramente lúcida, Camões não foi, mas Camões é. Camões não é presentificável; Camões impõe-se a ele mesmo no nosso presente trazendo-nos questionamentos inesperados.
Diz o poeta, questionando a sua própria identidade, nessa natureza sempre em mudança, até em si mesmo:
E sou já do que fui tão diferente
Que, quando por meu nome alguém me chama,
Pasmo, quando conheço
Que ainda comigo mesmo me pareço.
O humano num tempo de mudança
Para os dias de hoje, a obra de Camões transporta-nos para o tempo e para as questões fundamentais: a visão do mundo, a visão do humano, a inevitabilidade da mudança, a necessidade de sentido.
Olhando apenas para estas quatro dimensões que se interligam, temos já todo um programa, todo um ideário que é antropológico, político e social. Camões continua a ser um manancial poético que nos obriga a olhar para a nossa história e para a nossa forma de agir, e a confrontarmo-nos ao espelho que é a sua poesia, e verificarmos como somos tacanhos na interpretação do sentido coletivo e, até, na definição de uma identidade nacional.
Para Camões, a identidade residia na valorização do passado, mas com essa valorização literalmente subjugada à inevitável mudança. Portugal era a imagem e o motor desse Eros que tudo criava. Camões, ao olhar e à leitura do Portugal contemporâneo, é um murro no estômago contra o imobilismo, contra a apatia, contra os tradicionalismos e os nacionalismos que apenas glorificam o passado, esquecendo-se dessa coisa tão óbvia que é o fluir em direção ao futuro. “Tudo é composto de mudança”, esquecemos nós, glorificando o que passou.
É muito significativo que tenha sido Camões a escrever a nota de abertura do livro de Garcia de Orta Colóquios dos simples e drogas e cousas medicinais da Índia, onde o poeta afirma, de forma clara, que superamos hoje o que os antigos sabiam:
…vosso favor e ajuda ao grão volume,
Que, impresso à luz saindo,
Dará da Medicina um vivo lume,
E descobri-nos há segredos certos
A todos os antigos encobertos…
Num mundo que tanto valoriza a inovação e a criatividade, Camões apresenta-se como uma lufada de ar fresco que a esse desejo de tudo fazer mudar nos acrescenta a paixão e o sentido de missão. Camões é o pensador que nos obriga a olhar para o fundamental e a deixar o supérfluo de lado; que nos desafia a ter coerência na construção da linha que vai do passado ao futuro, dizendo-nos que o futuro é o fundamental.
No pleno sentido humanista, Camões valoriza os antigos, mas não hesita em dizer que eles estavam errados, quando tal era necessário afirmar.
Director-geral académico - Ensino Lusófona-Brasil