Intervalo
O intervalo estava associado directamente a um espaço: o recreio. Não havia distinção entre intervalo e recreio. Além disso, a vida verdadeira era o intervalo.
Voltei à faculdade e, por isso, voltei a deparar-me com um conceito de que já não me lembrava, pelo menos enquanto momento anunciado. Trata-se do intervalo. A meio da aula de três horas, fazemos um intervalo de dez minutos.
Lembro-me dele na escola. O intervalo estava associado directamente a um espaço: o recreio. Não havia distinção entre intervalo e recreio. Além disso, a vida verdadeira era o intervalo. A sensação dominante era de que as aulas interrompiam os intervalos, e não o contrário.
Agora, o intervalo está muito mais estreito. A ser um espaço, talvez seja o corredor, no máximo, o átrio. Após uma aula teórica exigente, os alunos são lançados neste hiato de bom grado, mas a interrupção causa um estranhamento. Há uma suspensão.
Quando vou ao cinema com as minhas filhas, os filmes têm intervalo. O critério para a escolha do intervalo, percebo, nada tem a ver com a lógica da narrativa ou com o momento do filme mais adequado à sua interrupção (e que momento seria esse?) mas é imposto de forma arbitrária. A meio do filme, dez minutos para se ir à casa de banho ou comprar pipocas.
Sempre impliquei com os intervalos no cinema, quando ainda os havia nos filmes para maiores de 12, porque me deslocavam completamente da história. Arrancavam-me da hipnose e eu demorava a voltar a entrar depois da luz, dos barulhos dos aquecedores de mãos, e de ouvir as opiniões sobre a primeira metade. O regresso àquele real do filme era lento e difícil depois de tanta realidade.
Escrevo este texto no intervalo das aulas, este espaço entre uma coisa e outra.
Foi deste espaço entre o pretendido e o que se tem que nasceu a linguagem. E as palavras servem para se pôr nas ranhuras, mesmo que quase nunca saia o brinquedo que se quer.
Onde estou é, mais do que um sítio, um entre. Habito as frestas. O entre é o espaço onde não se pode descansar, onde a palavra é só uma tentativa. O espaço entre a carne e o sangue, onde a vida hesita, onde o universo fraqueja. No entre, a forma não existe. Somos todos larvas. Encontro-me assim, num momento de pura espera, onde nada se mexe.
Olho para os meus colegas a andar pelo corredor, lançados como eu neste corredor/intervalo, este pedaço de não-tempo que atravessamos como sonâmbulos. Aprendi a gostar deste espaço suspenso em que não sei bem o que fazer. E comecei a dar mais valor aos silêncios entre os acordes, ao vazio entre uma resposta e outra.
A espera, a pausa e a lacuna cada vez me interessam mais.
O intervalo é o que escorrega. O que sobra quando a palavra vai. O intervalo é também a pausa para o cigarro, onde o tempo se dobra sobre si mesmo. Nada se concretiza, mas tudo existe em potencial.