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Cante alentejano: durante dez anos, Ana Baião retratou quem lhe dá corpo e voz
Ao longo de uma década, a fotojornalista do Expresso fez o retrato de quem dá corpo e voz ao cante alentejano. No livro 10 Anos de Cante reúne as imagens que produziu em homenagem aos artistas.
No dia 27 de Novembro de 2014, a UNESCO declarou o cante alentejano como Património Imaterial da Humanidade. Uma década depois, a fotojornalista do semanário Expresso Ana Baião lança o livro de fotografia 10 Anos de Cante, que reúne mais de duas centenas de imagens que recolheu entre 2015 e 2024 junto de quem dá voz e corpo ao cante alentejano e que consistem, nas suas palavras, numa “homenagem a todos os grupos corais, aos seus cantadores, ensaiadores, músicos e compositores” que conheceu.
Em 2015, quando Ana Baião recebeu uma proposta de uma editora para publicar um livro de fotografia, estava longe de imaginar que esse seria sobre cante alentejano. “A ideia era fazer um livro sobre as minhas reportagens, sobre países por onde já tinha passado em trabalho, sobretudo zonas de conflito”, conta ao P3, numa entrevista telefónica que realizou a partir do Alentejo, na véspera da primeira apresentação do livro, que se realizou em Serpa a 12 de Outubro. Debruçar-se sobre o cante, em 2015, surgiu da constatação de que “não havia praticamente nada, em formato de fotografia, publicado sobre o tema”. Pesou também o facto de ter tido um avô alentejano, “o avô Manel”, já falecido, que Ana tinha o prazer de acompanhar, durante a infância, quando ele se reunia com amigos e cantava na taberna.
A fotojornalista admite que, apesar dessa ligação antiga, pouco sabia sobre o cante alentejano quando deu início à jornada de dez anos que resultou em três livros sobre o tema – o primeiro, Cante, Alma do Alentejo, publicado em 2017, o segundo, Cuba Cante, Tabernas e Talhas, em 2021, e o último, que agora lança pela editora Tradisom. “Não fazia ideia de como tudo funcionava, que grupos existiam. Mas tive a sorte de contactar com pessoas que me orientaram e que me disseram quem é quem no mundo do cante.” Não foi difícil mergulhar nesse mundo, mas, no início, sentiu haver “uma certa desconfiança”. “Quando eu comecei, os grupos nunca tinham tido alguém a fotografá-los de forma sistemática, o que gerou alguma estranheza”, recorda. “Mas depois rapidamente me aceitaram e são sempre todos muito simpáticos comigo. Abrem-me sempre as portas.”
Em Cuba do Alentejo, Ana Baião fotografou o interior das tabernas onde se cantava o cante. Recorda ter sido particularmente desafiante fotografar naquele contexto pelo facto de “as mulheres, tradicionalmente, não entrarem nas tabernas”. Ana não só queria entrar nos estabelecimentos como desejava “ser o mais discreta possível”. “Queria fotografá-los de forma solta, não que ficassem tensos quando me vissem com a câmara”, justifica. A única solução que encontrou foi a de, durante duas semanas, tornar-se presença assídua. “Eu fazia o tour das tabernas todos os dias”, lembra. “Corria as tabernas todas à hora de almoço e à hora de jantar, o que os habituou à minha presença.” Fez por integrar-se. “De vez em quando, lá tinha de beber um bocadinho com eles. Às vezes pagava eu, outras vezes eram eles quem pagava. Uma pessoa não pode querer fazer uma reportagem no meio de determinado grupo de pessoas e depois não aceitar nada da parte dele.”
Ana acompanhou vários grupos ao longo dos anos. Recorda, com carinho, a viagem que realizou em 2015 na companhia do Rancho de Cantadores de Aldeia Nova de São Bento. “Eles iam actuar no edifício das Nações Unidas, que fica na 5ª Avenida, em Nova Iorque”, conta a fotojornalista. Conseguiu convencer o grupo a fazer uma paragem por Times Square para um retrato. “Sabia que daria uma capa [de livro] absolutamente maravilhosa”, observa. “O cante alentejano em Times Square, numa das cidades mais cosmopolitas do mundo. Achei que era uma ideia fantástica.”
Apesar dos desafios logísticos, o grupo parou mesmo no coração de Manhattan. “Foi muito engraçado, porque eles primeiro ficaram apenas em pose – aliás, essa fotografia que lhes fiz é mesmo a capa do primeiro livro”, aponta Ana Baião. A voz ilumina-se quando recorda. “Mas depois eu pedi-lhes para cantarem. Quando eles começaram a cantar, juntou-se logo uma pequena multidão para tirar fotografias, olhar para eles, bater palmas. As pessoas gostaram imenso, imenso.”
Outro dos momentos que considera memoráveis do longo período que dedicou ao registo fotográfico do cante alentejano é aquele em que viu actuar os membros do Grupo do Estabelecimento Prisional de Beja, composto por reclusos, durante o evento de apresentação do seu primeiro livro. “Actuaram e depois ficaram à espera do Marcelo [Rebelo de Sousa], que chegou quase duas depois da hora prevista. Quando o Presidente chegou, cantou com eles e tiraram uma série de selfies. Foi muito engraçado.”
O livro, composto exclusivamente por fotografias a preto-e-branco, “começa com fotografias que fazem uma ligação ao passado rural do Alentejo, com as mulheres que cantavam no campo, com os homens que cantavam nas tabernas” e “termina com fotografias viradas para o futuro, com os jovens que cantam nas escolas, com os grupos que andam em tournée com artistas como o Pedro Abrunhosa, o Tim, vocalista dos Xutos e Pontapés, a Ala dos Namorados, entre outros”, explica a fotojornalista. O músico Vitorino é mesmo um dos que não só surge retratado como escreve algumas palavras que Ana Baião inclui no livro.
Com o surgimento da pandemia, que afectou durante quase dois anos a sua recolha documental, a fotojornalista temeu ver o cante esmorecer ou mesmo morrer. “Estava tudo parado, tudo estagnado”, lamenta. Mas aconteceu o inverso. “Há muitos grupos novos, muitos jovens a aderirem. As pessoas falam mais sobre o cante, há mais eventos.” Surgiram até, faz notar, grupos em Lisboa, fenómeno que há dez anos não existia. “Noto que o cante está, agora, mais vivo do que nunca.”