Nem sei se sabes, mas se não sabes devias saber, que desde que desapareceste o meu coração balança no varal, indiferente às intempéries, como uma uva passa que vive num compasso de espera, condenada ao bucho contrariado da superstição. Ainda não apaguei o teu número de telefone. Pode ser que o aparelho avarie e perca a agenda, caso contrário nunca terei coragem de te extinguir dos meus contactos.
O teu rosto aparece-me durante os sonhos, bates à porta, vejo-te pelo olho-de-boi e nunca vou a tempo. Quando escancaro a passagem, puf, já não estás, desapareceste. Sei que agora és parte da memória, um ruído, uma frase, uma imagem pequenina a cores tipo passe para lugar nenhum. Estou a escrever e apareces junto ao computador, por exemplo: "Filha, vai com calma." E as letras no ecrã quase se embaciam, não fosse o meu treino de barragem do Alqueva, cada vez mais ágil e seguro. Batem à porta, levanto-me desta mesa em que escrevo e vou ver quem é. O carteiro, provavelmente.
Espreito pelo olho-de-boi e lá estás tu, com o teu sorriso de mariola emoldurado pela cabeleira branca. Não estou a dormir, estarei? Não me belisco porque não aguento o clichê nem as nódoas negras. Estou certa de estar acordada. És tu. Abro a porta com o coração a trepar a garganta até à boca, és tu. "Tudo isto acontece. Tudo isto irá acontecer-nos. Porque tudo o que acontece não é mais do que aquilo que nos acontece."
Desconheço a linha ténue que distingue os contornos da realidade, quero abraçar-te. Mãezinha. Mãe adoptada, mãe fictícia. Vou poder contar-te o escândalo da tua morte. Sentamo-nos as duas nos degraus da escada, no mármore, o frio tumular perpassa os jeans. Fumamos um cigarro e a tua caveira lembra-me Yorick, o bobo de Hamlet. "Ah, pobre Yorick." Contas-me como tem sido a não-existência. Há bolachas Maria. Há bolachas, Maria. Como tem sido viver sem o teu açúcar, só eu sei e não vou dizer-te.
Na não-existência, além de bolachas, há cães e Coca-Cola, mas não há livros e isso é algo que te chateia. O além-mundo sem livros. "Não me aborreças", disseste a Deus, quando te falou do problema do papel da eternidade. Tens saudades dos amigos, por isso não podes ficar muito tempo, tens muitas casas para visitar. Vieste só fumar um cigarro comigo e deixar um rasto de azul à minha porta. Os teus olhos anunciam que tens de partir. Não podes ficar.
E eu ainda não te contei o quanto me queria ter rido contigo por te terem vestido uns collants brancos nos cuidados intensivos. Cheguei à beira da tua cama e parecias pronta para um espectáculo de ballet. Só te faltavam as pontas. Minha caracoleta. Em vez de te despedires, atiras um "amo-te, filha". E, puf!, voltas a desaparecer. Sinto-me uma lâmpada num mar de pedras. Nem sequer vou acrescentar um mas.