Quando, em 2012, se tratou de encontrar um substituto para o lugar de Ratan Tata à frente do Grupo Tata, o processo foi moroso e tudo menos fácil. Afinal, além de ser, na época, uma empresa a facturar cem mil milhões de dólares, também pesava sobre ela uma espécie de responsabilidade social que Ratan Tata pretendia que ocupasse um lugar fulcral no coração e na mente de quem o sucedesse.
A herança era pesada. Foi Ratan Tata que, ao longo de duas décadas à frente do grupo, colocou o conglomerado indiano no palco global com uma série de aquisições de topo, ao mesmo tempo que se distinguiu por nunca ter feito parte de qualquer lista de multimilionários. “Ele não era o típico empresário poderoso; era do tipo que se sentia mais à vontade com pessoas comuns do que entre os ricos e famosos”, recorda ao PÚBLICO o editor da Autocar India e amigo de Ratan Tata, Hormazd Sorabjee, lembrando um episódio, no Salão de Genebra, em que todos queriam tirar uma fotografia com Tata. “A única pessoa com quem ele aceitou posar para uma fotografia foi com a mulher que limpava o seu stand há dez anos.”
Ratan Tata morreu, nesta quarta-feira, num hospital de Bombaim, Índia, onde se encontrava internado nos cuidados intensivos por problemas relacionados com a idade. Tinha 86 anos.
“É com um profundo sentimento de perda que nos despedimos do senhor Ratan Naval Tata, um líder verdadeiramente invulgar, cujas contribuições incomensuráveis moldaram não só o Grupo Tata, mas também o próprio tecido da nossa nação”, afirmou a empresa, citada pela Reuters. E as homenagens não se fizeram esperar. O primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, descreveu Ratan Tata como “um líder empresarial visionário, uma alma compassiva e um ser humano extraordinário”, sublinhando “a sua humildade, a sua bondade e o seu empenho inabalável em melhorar a nossa sociedade”.
Ratan Tata nasceu em Bombaim, no seio de uma família zoroastriana, filho de Naval Tata, que fora adoptado por Ratanji Tata, o filho mais novo do fundador do Grupo Tata. E, quando os pais se separaram, acabou por ficar com a viúva de Ratanji Tata, que o adoptou.
O seu percurso no Grupo Tata não começou pela presidência. Depois de ter estudado arquitectura na Universidade de Cornell, regressou à Índia, tendo passado por várias empresas, como a Telco, transformada em Tata Motors, ou a Tata Steel. Viria a assumir a direcção do conglomerado em 1991, depois de o seu tio J.R.D. Tata se afastar, numa altura em que a economia da Índia se abria ao mundo. E Ratan Tata, em vez de temer a concorrência, soube aproveitar a boleia, não sem antes impor uma reestruturação interna com o objectivo de rejuvenescer a empresa.
Em 1996, fundou a empresa de telecomunicações Tata Teleservices e, em 2004, abriu o capital da empresa de TI Tata Consultancy Services, a “galinha dos ovos de ouro” do grupo. E, pelo meio, percebeu que tinha de vingar além-fronteiras.
O grupo comprou a empresa britânica de chá Tetley em 2000 por 432 milhões de dólares (quase 400 milhões de euros) e a siderúrgica anglo-holandesa Corus em 2007 por 13 mil milhões de dólares (12 mil milhões de euros), na altura a maior aquisição de uma empresa estrangeira por uma indiana. A Tata Motors adquiriu depois as marcas britânicas de automóveis de luxo Jaguar e Land Rover, em 2008, por 2,3 mil milhões de dólares (2100 milhões de euros).
Na época, a Jaguar e a Land Rover pertenciam à Ford. Mas a norte-americana, a enfrentar um possível quadro de falência, não tinha quaisquer planos para os emblemas britânicos. E, num abrir e fechar de olhos, a JLR tornou-se uma das empresas mais rentáveis do grupo.
Mas os projectos que lhe eram mais queridos não passavam por Coventry, que permanece a ser a sede da JLR. Preferia sonhar com o Indica, o primeiro modelo automóvel concebido e construído na Índia, lançado em 1998 e que foi um sucesso, bem como com o Nano, apresentado como o automóvel mais barato do mundo.
O Nano, que se apresentou por cem mil rupias (cerca de dois mil euros, ao câmbio da época), tinha um propósito muito especial: permitir que as famílias indianas pudessem trocar a motorizada, onde se sentavam até quatro pessoas, por um automóvel pequeno, que lhes desse maior segurança.
Só que, para conseguir produzir um carro barato, não foram apenas os luxos que foram dispensados: não tinha airbags nem travões ABS, tendo obtido nos testes de colisão um redondo zero; o motor assumia a posição traseira e o depósito de gasolina estava na frente; e, para manter o carro leve, o aço de algumas peças foi substituído por fibras e plásticos — o que poderá explicar a rapidez com que os Nano ardiam quando se incendiavam (e no arranque houve vários incidentes registados). O quadro não causou boa impressão no mercado doméstico e a ideia de vendê-lo na Europa ou nos EUA esmoreceu.
O Nano foi descontinuado em 2018, tendo vendido menos de 300 mil unidades ao longo de dez anos; a expectativa era que fossem comercializadas 250 mil… por ano.
O industrial mais amado da Índia
Ratan Tata nunca se casou e era conhecido pelo seu estilo de vida modesto e pouco extravagante. Tinha uma colecção de carros, como seria de esperar em alguém que era apaixonado por automóveis (também pilotava aviões e helicópteros), mas o conjunto não era o que se poderia esperar, reflectindo mais a sua paixão do que a sua fortuna: um Ferrari California, um Mercedes 500 SL, um Cadillac XLR, um Lincoln Town Car dos anos de 1960, além de, claro, alguns Jaguares e Land Rovers.
Sobre a sua personalidade, Hormazd Sorabjee, que dedica ao empresário um emotivo texto na Autocar India, conta que “quer se tratasse de mostrar gentileza para com os funcionários ou de cuidar de cães de rua, a humildade e a consideração de Ratan Tata distinguiam-no”. E sublinha: “Ao contrário de muitas figuras poderosas, ele nunca procurou impor-se, mas sempre procurou cuidar.”
O trabalho filantrópico que desenvolveu, e pelo qual se tornou “o industrial mais amado da Índia” (palavras de Sorabjee), era algo que não era estranho à família. O Grupo Tata sempre teve, desde a sua criação, em 1868, uma vertente marcadamente patriótica e filantrópica. Escrevia-se no PÚBLICO em 2012. “A Tata Sons participa no capital de 182 empresas; 66% do capital da Tata Sons são propriedade de fundações filantrópicas ligadas à família Tata. Realizações de grande alcance nacional desta prática remontam aos primórdios do grupo: por exemplo, em 1909, foi criado o Tata Institute of Sciences, em Bangalore, um centro de investigação em Química, Física, Biologia, etc., oferecendo uma plataforma para mestrados e doutoramentos (…). Com a independência da Índia, a família Tata achou que já não tinha sentido ostentar o nome Tata, ficando então a designação reduzida a Indian Institute of Sciences.”
Curiosamente, Ratan Tata não consta na lista de multimilionários da Forbes. É que, apesar do sucesso financeiro do Tata Group, uma parte significativa da riqueza da empresa é detida pela Tata Trusts, que reinveste os lucros em iniciativas de desenvolvimento comunitário, como em educação, cuidados de saúde e capacitação rural. Já Ratan Tata, depois de se afastar do Grupo Tata, tornou-se um investidor proeminente em empresas indianas em fase de arranque, apoiando uma série de iniciativas, entre as quais a empresa de pagamentos digitais Paytm, a Ola Electric, uma unidade da empresa de transporte Ola, e a Urban Company, um fornecedor de serviços domésticos e de beleza. E o seu amor pelos animais levou-o a fundar o Small Animal Hospital em Bombaim.
“Recordaremos o seu legado de doações transformadoras para Cornell”, declarou a sua antiga universidade, admitindo que Tata era o seu doador internacional mais generoso. “A Índia e o mundo perderam um gigante com um coração gigante”, declarou o embaixador dos Estados Unidos, Eric Garcetti, no X, a propósito de Tata, que foi galardoado com o Padma Vibhushan, a segunda maior condecoração civil da Índia. Nos EUA, o multimilionário Bill Gates escreveu no LinkedIn: “Ratan Tata foi um líder visionário cuja dedicação em melhorar a vida deixou uma marca indelével na Índia — e no mundo...”
A par da sua veia filantrópica, Ratan Tata também conseguia ser decidido e intransigente, como quando o Grupo Tata destituiu Cyrus Mistry, um descendente do clã Shapoorji Pallonji, como presidente da Tata Sons em 2016. Afinal, o tal processo moroso de 2012 para encontrar o seu sucessor não tinha sido satisfatório.
A quezília daria origem a uma disputa pública, com o Grupo Tata a justificar a destituição com o fraco desempenho de Mistry e este a acusar o seu antecessor, Ratan Tata, que se manteve como presidente emérito do conglomerado, de interferir e criar um centro de poder alternativo no grupo. “Ele estava sempre pronto para uma luta”, diz Sorabjee, numa conversa telefónica com o PÚBLICO, destacando que o empresário nunca entrou numa joint venture. “Ele só queria ser independente.”
Tata venceu e assumiu as rédeas das empresas até encontrar um novo sucessor: desde 2017, o presidente executivo do império Tata é Natarajan Chandrasekaran.
Ratan Tata morreu nesta quarta-feira, tendo o seu corpo sido transportado, na manhã seguinte, para os relvados do Centro Nacional de Artes Performativas (NCPA, na sigla original), em Bombaim. Ao longo de quinta-feira, foram milhares os que se dirigiram ao espaço para lhe prestar uma última homenagem, que incluiu uma salva de tiros pela polícia da cidade.
As exéquias foram realizadas com honras de Estado e foi decretado um dia de luto nacional, tendo a cerimónia do funeral sido realizada de acordo com o zoroastrismo, num crematório da cidade. Após o funeral, serão cumpridos mais três dias de rituais no bungalow de Ratan Tata em Colaba, no Sul de Bombaim.