Sofia Dias e Vítor Roriz dançam para os neurónios-espelho
Há muitas respostas para aquilo que se vê em palco. Em Ruído, a dupla de coreógrafos convida o público a encontrar os seus sentidos nas palavras e nos gestos partilhados.
O que se vê nos primeiros segundos de um espectáculo de dança? Um começo, um prazer, uma abstracção? Um corpo esguio, o cabelo ruivo, o desenho de cada gesto, mãos que tentam agarrar o ar? A diferença, o contraste entre os vários bailarinos? São algumas das perguntas e das hipóteses que Sofia Dias e Vítor Roriz colocam nas bocas e nos corpos dos intérpretes de Ruído (Connor Scott, Lewis Seivwright, María Ibarretxe, Natacha Campos, Vi Lattaque), e para as quais convocam cada espectador. As palavras ficam no ar, até que o elenco vê alguém do público (um corpo real, fantasiado?) levantar-se e subir ao palco, integrar a performance, transformando o espaço em que se encontram.
É um convite que os dois coreógrafos lançam na direcção da plateia da Culturgest, Lisboa (entre esta quinta-feira e sábado; seguindo-se o Centro Cultural Vila Flor, Guimarães, a 26, e o Cineteatro Louletano, Loulé, em 2025), não tanto num sentido participativo, mas antes num desafio a que as pessoas se impliquem naquilo que vêem, deixem que o seu olhar e as imagens que lhe invadem o pensamento possam fazer parte do espectáculo. Embora Ruído fosse uma peça em que os dois vinham pensando já há dois anos, acaba por cruzar-se também com a residência artística que, desde 2023, têm desenvolvido na Fundação Champalimaud. E daí resulta a reflexão sobre os chamados neurónios-espelho, ligados à visão e ao movimento, responsáveis, entre outras coisas, pela empatia. Culpados, portanto, por vermos alguém em palco e nos projectarmos naquilo a que assistimos.
“É algo que, de facto, acontece”, dizem ao PÚBLICO, “como percebemos numa conversa com neurocientistas, e que quisemos explorar de uma forma mais assumida.” E que implicou desmontar uma das formalidades que se lhes apresentava: depois de as suas peças mais recentes terem sido trabalhadas e apresentadas em “espaços não convencionais, onde a relação com o público é muito horizontal”, no início do processo de Ruído a dupla deparou-se com alguma resistência em subir para o palco. “Durante muito tempo, parecia que os materiais não se desenvolviam”, porque continuavam a pensar numa dramaturgia que envolvesse o público de uma forma mais directa. “Até que conseguimos contornar isso, lembrando-nos de que as peças convencionais são também participativas, no sentido em que estamos sempre a projectar-nos”, com ou sem a explicação dos neurónios-espelho.
Os encontros semanais com os investigadores em equipas multidisciplinares da Fundação Champalimaud, explica Sofia Dias, tiveram ainda impacto no “modo como damos a ver o movimento”, em especial na porta de entrada para o espectáculo, concretizada na inicial pergunta (em inglês) “what do you see?”. “Porque nessas conversas havia muito a percepção de que aquilo que fazemos é fora do comum, de que a dança tem uma linguagem própria. O regresso a uma base de falar sobre o que fazemos ajudou-nos a perceber o quão extraordinário isto é.” Daí o reforço de trabalharem em torno do conceito do ruído, que “para a neurociência está envolto num grande mistério”. “E essa aura do desconhecido é, para nós, super-interessante, porque trabalhamos a partir do lado ambíguo da poética, da estranheza, do mistério.”
A tradução
Explorando, desde o início do seu percurso conjunto, a palavra num contexto coreográfico, Sofia Dias e Vítor Roriz continuam a trabalhar em Ruído sobre essa linguagem muito própria. Só que agora fazem-no, defende Roriz, com recurso a textos que “há alguns anos” jamais escreveriam, por serem “bastante directos”. Mesmo se directas, as frases ditas em palco pelos cinco intérpretes, em inglês, francês, castelhano e português, vão conhecendo tradução em papelinhos que o coreógrafo manipula ao vivo e são projectadas em fundo. Só que, explica, “há espaço para cada um deles, no momento, encontrar uma formulação melhor e alterar” a frase. “Pelo que esta tradução já está condenada à partida, uma vez que aquilo que é dito pode ser sempre reformulado – não acreditamos na fixação ou na cristalização do trabalho de interpretação”.
A consequência desse desfasamento, claro, abre-se aos olhos do público, tira o tapete à literalidade, convida aos vários significados, rasga qualquer verdade sobre gestos, palavras, acções. Tudo é válido, diz-nos Ruído, não há certo nem errado, apenas um convite continuado à relação individual com o espectáculo, libertando o espectador para responder à pergunta “what do you see?” da forma que entender. Se nos seus primeiros projectos artísticos Sofia Dias e Vítor Roriz eram “muito privados, íntimos, familiares” nos processos, agora dizem “privilegiar muito a interferência de outros” e aprenderam a “aceitar o ruído no processo criativo”. O ruído, aqui, é bem-vindo. É o som de um coro, sentado na plateia, que não canta em uníssono.