Desafiada a cozinhar, a IA só quis saber uma coisa: quem é o júri?
O chef espanhol Ricard Camarena enfrentou o Chat GPT numa competição para criar pratos com ingredientes escolhidos pelo público do San Sebastian Gastronomika. Ganharam as criações com “alma”.
De um lado, um dos grandes chefs espanhóis, Ricard Camarena, do restaurante com o mesmo nome, em Valência, com duas estrelas Michelin; do outro, a inteligência artificial. O desafio, lançado no congresso San Sebastian Gastronomika, no País Basco, era criarem três pratos, uma entrada, um principal e uma sobremesa, com ingredientes escolhidos de forma aleatória pelo público.
A tarefa não parecia fácil. Imagine-se o que é ter de criar um prato (neste caso a entrada) com estes cinco ingredientes: ostras, atum, figo, castanhas e batata. As duas equipas tinham 24 horas para chegar a um resultado, que foi apresentado na terça-feira, no palco do San Sebastian Gastronomika.
Além da entrada, o desafio consistia em fazer um prato principal usando a pescada como ingrediente central, mas com duas técnicas, a cura por sal e o assado no forno. E para a sobremesa, a escolha do público recaiu sobre o carrot cake, que as duas equipas tinham de reinventar.
Eneko Axpe, um físico que se tem dedicado a estudar as possíveis aplicações da IA no mundo da gastronomia, e a investigadora Laia Badal, da Fundação Alícia para o estudo da alimentação, ajudaram a traduzir o desafio para a IA. Segundo Eneko, a única pergunta que o Chat GPT (usado por ser o mais acessível para o público não especializado) fez foi: quem será o júri?
Sem dúvidas sobre os detalhes do desafio, o Chat GPT preocupou-se em perceber quem iria tomar a decisão final. Mas, nessa altura, os seus interlocutores ainda não sabiam que seriam o crítico veterano José Carlos Capel, o chef Joan Roca, do famoso El Celler de Can Roca, em Girona, e o jornalista Manuel Villanueva. Sem mais informação, o Chat GPT quis saber pelo menos se seriam espanhóis. Ficou claro que as receitas seriam adaptadas ao gosto de quem as iria julgar. A IA estava em jogo para ganhar.
À hora marcada, 16h de terça-feira, estavam no palco Ricard Camarena e Daniel Barrionuevo, da Fundação Alícia, que se dispôs a ser as mãos da IA neste desafio. Foi ele quem cozinhou, seguindo ao milímetro as indicações dadas pelo Chat GPT. Quando surgiam dúvidas, a equipa introduzia novas perguntas para ir mais fundo nos detalhes.
Ricard Camarena foi explicando como se desenvencilhou da dificuldade de casar os cinco ingredientes escolhidos, enquanto empratava o atum (cuja cabeça usou para fazer uma gelatina) com a ostra, as peles de figo maceradas em azeite e manjericão, um tártaro de figo e castanha e ainda umas batatas fritas desidratadas para dar alguma textura crocante ao prato que apresentou.
Do lado da AI, a receita teve como base um puré de batata, um tártaro com o atum e a ostra e um relish de figo e castanha. O cozinheiro humano a quem coube a tarefa de a transpor para a realidade recebeu também instruções sobre como empratar (nenhum dos dois pratos da entrada estava muito bonito, mas compreende-se, dado o exotismo da mistura de ingredientes).
O duelo seguiu com o prato principal e a sobremesa. No caso da pescada, o júri considerou, no final, que o peixe estava demasiado cozinhado, mas o chef que o fez sublinhou que os tempos de confecção tinham sido exactamente os que a IA tinha indicado.
O público ouviu as descrições e as explicações sobre como tinham sido executados mas não os provou. Pôde, contudo, ir acompanhando as reacções dos três jurados, que foram apreciando os pratos sem saberem qual o autor de cada um.
No final, vieram ao palco para partilhar as suas impressões e confirmar o que tinham intuído: as criações que mais lhes agradaram foram as de Ricard Camarena. Já a sobremesa, duas versões “desconstruídas” do carrot cake, terminou num empate, sem conseguir entusiasmar o júri.
Não é que as criações da IA estivessem mal, garantiu Joan Roca. Estavam correctas, mas “faltava-lhes alma” – faltava-lhes “interpretação”, acrescentou Capel. Essencialmente, este é o ponto: a IA sabe pensar mas não cozinha com alma (o que, temos de reconhecer, seria difícil dado que, apesar de ter milhões de receitas interiorizadas, nunca provou nenhuma).
Ricard Camarena confessou ter consciência disso: “Não sei como [a IA] combina os dados e extrai as conclusões, mas decidi ligar mais à intuição e menos à reflexão. Porque nós, quando queremos ser criativos, temos tendência para pensar demasiado.” Queria chegar “onde achava que a IA não poderia chegar”. Também ele estava ali para ganhar.
Eneko Axpe lembrou a velocidade com que as coisas estão a evoluir e disse que, com novas versões do Chat GPT e de outros sistemas semelhantes a sair a cada 18 meses, o interessante num próximo desafio seria fornecer ao computador todas as receitas de Ricard Camarena e depois pôr frente a frente dois concorrentes de peso: o verdadeiro Camarena e a sua versão virtual.
A Fugas viajou a convite do San Sebastian Gastronomika