Reagan. A vida do santo padroeiro do anticomunismo internacional

O que o realizador Sean McNamara fez nem é bem uma biografia, é mais uma hagiografia. Estreia-se quinta-feira em Portugal.

filmes,cultura,ipsilon,critica,cinema,culturaipsilon,
Fotogaleria
O filme Reagan estreia-se esta quinta-feira nas salas de cinema portuguesas
filmes,cultura,ipsilon,critica,cinema,culturaipsilon,
Fotogaleria
O filme Reagan estreia-se esta quinta-feira nas salas de cinema portuguesas
filmes,cultura,ipsilon,critica,cinema,culturaipsilon,
Fotogaleria
O filme Reagan estreia-se esta quinta-feira nas salas de cinema portuguesas
Ouça este artigo
00:00
03:52

Estamos habituados às carradas de biopics medíocres sobre os santos da Hollywood liberal, democrata, é justo que a Hollywood conservadora, republicana, tenha direito a semelhantes empreendimentos, e à mesma mediocridade. Reagan, biografia do antigo actor tornado 40.º Presidente dos Estados Unidos da América, tem à partida essa curiosidade, ser um exemplar de algo mais raro do que se costuma notar, uma emanação da Hollywood mais conservadora, recheada de actores habitualmente associados ao Partido Republicano, de Dennis Quaid (que dá corpo a Ronald Reagan) a Jon Voight, passando por Robert Davi (que interpreta, e ninguém se ria, Leonid Brejnev).

Mas nem é bem uma biografia, é mais uma hagiografia: Ronald Reagan como santo padroeiro do anticomunismo internacional, o homem que estava predestinado a acabar com a União Soviética.

É fácil fazer chacota do anticomunismo do filme, que fala da União Soviética que como se ela não tivesse acabado há 30 anos e do comunismo como se ele tivesse a pujança que tinha há 60 anos, e que os reconstitui como se se tratasse de uma versão séria das paródias de Lubitsch (em Ninotchka) ou de Billy Wilder (em Um, Dois, Três), mas, enfim, também se pode argumentar que esses temores nunca desapareceram, fizeram foi um lifting (é o que se esconde por trás da paranóia do “marxismo cultural”, por exemplo). E de facto, é difícil não fazer chacota perante a convicção com que o filme assume a “predestinação” de Reagan: a narração faz-se num flashback, pela voz de um antigo agente do KGB (Voight) que vigiava Reagan desde os anos 40, e desde logo, ainda o homem era um obscuro actor de série B que nem os americanos reconheciam, viu nele (a que chama “o Cruzado”) a mais perigosa ameaça existencial à URSS.

Tudo se subsume nisto, mais risota, menos risota. O que significa, bem de acordo com a rota da predestinação, que Reagan não tem nenhum interesse pela carreira de actor do seu biografado, cujo relativo falhanço é encarado como parte de um “plano divino”: tivesse tido outro reconhecimento como actor, nunca Reagan se teria voltado para a política. Traria, no mínimo, mais densidade outra atenção ao Reagan actor, que não terá sido o melhor do mundo, mas esteve em filmes bons (foi óptimo nas mãos de Allan Dwan ou de Stuart Heisler, em papéis até politicamente granulosos – no excelente Storm Warning, de Heisler, interpretou um agente da autoridade a dar caça ao Ku Klux Klan). Mas nada disto interessa ao filme, que, de resto, tem uma relação de quase aversão com a Hollywood dos anos 1940 e 1950, vista (com boas razões) como um ninho de esquerdistas, e retratada episodicamente numa sucessão de cenas anedóticas (não falta uma com Dalton Trumbo, visto, para variar, com desconfiança) que até desperdiçam a atitude digna de Reagan durante o macarthismo (quando, perante as comissões de inquérito, reiterou o seu anticomunismo, mas se opôs à perseguição dos comunistas, argumentando que a democracia americana era suficientemente forte para aguentar a existência de comunistas no seu seio).

Reagan desembaraça-se disto tudo a toda a velocidade, alternando a vida pública e a vida pessoal do seu santo, para chegar aos anos da presidência de Reagan, onde se detém com um pouco mais de detalhe. Arrebita aí um pouco também, embora isto possa ser uma sensação ditada por uma nostalgia dos anos 80 – até porque figuras como Margaret Thatcher ou Mikhail Gorbatchov surgem caracterizadas como versões de contrafacção dos seus equivalentes reais, caricaturas involuntárias que não destoariam num filme de Mel Brooks (o único momento inspirado do filme, que só pode surgir por um acaso face ao que ele é no resto do tempo, deve-se a uma erupção do humor: a rápida sucessão das mortes de Brejnev, Andropov e Chernenko, dada numa acidez cómica que até podia ser billywilderiana).

No entanto, tudo se torna ilustração da lenda histórica: Gorbatchov, no fundo, é bom tipo, o Muro cai, a URSS dissolve-se, Reagan (apesar de tudo, humanamente bem defendido por Dennis Quaid) é o anjo exterminador do comunismo. Fim da história, ou fim da missa.

Foto
Sugerir correcção
Ler 5 comentários