Na montanha mais alta da Ucrânia não há sirenes, só a promessa de um futuro
Dezenas de milhares de pessoas sobem o monte Hoverla todos os anos. Durante a guerra, tornou-se num vislumbre de paz.
Todos vão à montanha – os soldados e os civis, as avós e os netos, o grupo turístico e o caminhante solitário, residentes do Este devastado pela guerra ou do calmo Oeste – apenas para experienciar um precioso momento em que não têm medo.
Aqui, no ponto mais alto da Ucrânia, a guerra desaparece.
As sirenes não existem, os mísseis são escassos. Nos Cárpatos, o silêncio é ensurdecedor. As nuvens azuis acinzentadas rasgam as cordilheiras, e a paisagem verde fura o horizonte. O vento é uma carícia – um lembrete de como é a paz.
Dezenas de milhares de pessoas sobem o monte Hoverla todos os anos, mas o pico de 2061 metros ganhou um novo significado desde que a Rússia invadiu a Ucrânia em 2022. Agora, a montanha tornou-se num lugar de peregrinação para montanhistas acalmarem o seu luto e sofrimento, nem que seja por apenas algumas horas.
“Quero respirar ar fresco e fugir da imagem de guerra”, diz Oksana Kotliarenko, 37 anos, que surge, nesta manhã de meados de Setembro, no início do trilho dentro de um táxi salpicado de lama. “Lá em cima, estás mais perto de Deus.”
Depois de sair do táxi, visita, com o marido, as lojas do sopé da montanha. Há lojas de aluguer de bastões de caminhada, botas e casacos quentes. Vendem-se também bandeiras da Ucrânia, ímanes para o frigorífico e medalhas comemorativas, assim como garrafas de vinho de plástico e xaropes medicinais.
“Claro que vale a pena”, diz o comerciante Anatoliy Gaponyuk acerca da montanha Hoverla. Sentado num pequeno banco à porta da loja, espera por clientes. “Todos os ucranianos deviam escalar aqui pelo menos uma vez.”
Observa o casal que começa a jornada.
No início do trilho
O trilho fica no final de uma estrada de cascalho – depois de empresas que anunciam o aluguer de veículos de quatro rodas e agricultores que guiam os seus cavalos na relva encostada à estrada, depois do ponto de controlo onde soldados estão prontos para dar avisos de alistamento militar a homens elegíveis.
No lote principal, Vladyslav Palichuk, 23 anos, intercepta condutores para cobrar a taxa de estacionamento: 50 hryvnias, cerca de 1,14 euros. Veste um colete amarelo, uma pequena bolsa à volta do peito. Esta temporada recebeu muitos soldados, alguns amputados. Alguns chegam em grandes autocarros. Outros, nos carros da família, apinhados com crianças. Geralmente estão vestidos de verde.
Nesta manhã, uma tempestade encobre a vista da Hoverla. O parque de estacionamento está pouco preenchido. Perto do pequeno edifício onde os colegas de Palichuk fazem o intervalo, um cão lambe as patas, o pelo escuro molhado.
Palichuk conseguiu escalar a montanha meia dúzia de vezes este ano. A caminhada, diz, é “feita para provar algo a ti mesmo”.
Fora da floresta, entre as faias e os abetos, surge um soldado. Uma capa de chuva verde cobre a sua mochila Osprey. A sua barba é rebelde e os seus dedos estão gelados, depois de uma noite passada no topo da montanha.
“Dez vezes pensei em voltar para trás por causa das lesões nas minhas pernas, provocadas pelas explosões”, diz o soldado Yaroslav, que pediu para ser identificado apenas pelo primeiro nome devido à sensibilidade do seu trabalho nos serviços de inteligência no exército. “Olhava para trás e pensava na vida que vivi. Olhava para cima à procura de motivação.”
O cume da montanha está mesmo ali, disse a si próprio, assim como dias melhores – o “topo da minha vida”.
Sentir-se seguro
Dois caminhos principais cortam o flanco da montanha – o verde, ligeiramente mais longo, e o azul, mais íngreme. Atravessam a floresta e convergem numa escarpa rochosa, que leva ao cume. Juntos, os trilhos formam uma espiral ao longo de cerca de seis quilómetros.
Cada quilómetro tem marcas dos visitantes. Nomes e mensagens estão rabiscadas a marcadores em pedras: “Masha, Katya, Vitaliy, Eva, 2023.” “Donbass”, com um coração a preto, uma referência ao território ocupado pela Rússia. “Libertem Azov”, para os soldados da Brigada de Azov, muitos deles feitos prisioneiros durante o ataque da Rússia a Mariupol, no início da guerra.
Não muito longe do topo, Illia Begday, 19 anos, e Oleskandr Kosmak, 20, descansam encostados a uma das rochas mais largas, a recuperar fôlego. Conduziram durante a noite – dormiram no carro, no estacionamento de uma estação de serviço –, para chegar ao trilho às seis da manhã. Ambos já tinham escalado a montanha, quando eram crianças, mas à medida que as novas leis de recrutamento continuam a reduzir a idade de alistamento, receiam não ter outra oportunidade de subir.
“Posso não ter outra oportunidade de chegar lá acima”, diz Kosmak.
“Vivemos todos debaixo de ataques. Nunca sabes quando é que um míssil te vai atingir”, continua Begday.
Levantam-se e continuam na última subida, respiração ofegante.
No topo, a neblina gira.
Centenas de bandeiras – apagadas pelo sol e desgastadas, novas e brilhantes – estão atadas a um grande monumento de metal que há muito está no topo da montanha, mas agora está coberto de vestígios de guerra. Na base, estão amontoadas máscaras de gás, um peluche de coelho cinzento com o pêlo emaranhado, uma granada, um brinquedo em forma de camião, uma lancheira verde e retratos de militares de quase todas as brigadas, jovens e mais velhos.
Kotliarenko – que chegou ao sopé da montanha de táxi – absorve o cenário. Da última vez que subiu esta montanha, há mais de 15 anos, só havia meia dúzia de bandeiras no topo. Agora, enchem o cume. Observa uma placa especial, uma homenagem a um dos primeiros soldados a morrer nesta guerra.
“Não esperava isto”, confessa.
Mais pessoas chegam.
“Ainda que pareça tudo calmo aqui, somos lembrados que ainda há uma guerra a acontecer”, diz Heorhiy Pidgulko, 24 anos. “Mas graças a Deus que ainda temos alguns sítios como este – caso contrário, enlouquecíamos. É bom não acordar com sirenes ou explosões e, em geral, sentir que estás seguro.”
Perto, uma bandeira esvoaça: “Ucrânia acima de tudo”, lê-se.
Promessa de futuro
Dois dias mais tarde, a tempestade passou e o sol voltou. As borboletas laranja voam com a brisa e as flores desabrocham.
A montanha Hoverla brilha.
Desta vez, milhares de caminhantes invadem os seus flancos. Um comandante de 45 anos, com as pernas marcadas de queimaduras e feridas de estilhaços, veio com a família toda. Uma mãe carrega uma criança com os cabelos sedosos nos seus braços. Um grupo de 29 pessoas veio de Carcóvia (Kharkiv), uma cidade demasiado próxima da fronteira com a Rússia e de mísseis.
“Depois de Carcóvia, nem sequer temos receio de escalar a Hoverla”, diz Vira Kovtun, 50 anos. “Esta é a vida em Carcóvia: vais para a cama e agradeces a Deus por teres vivido mais um dia. De manhã, agradeces a Deus por teres acordado.”
“Ainda não ouvimos nenhuma sirene”, acrescenta Larysa Zemlyana, 60 anos. “Em Carcóvia não pára.”
Praticamente todos os caminhantes descrevem um sentimento de euforia enquanto sobem até ao topo – uma vitória por si só. A cada respiração – cada dedo do pé no solo lamacento, cada dor muscular, cada gota de suor – a montanha lembra-os que estão vivos.
No topo, pessoas posam com bandeiras da Ucrânia à volta dos seus ombros. Partilham sanduíches, embalam crianças, riem-se com os amigos. Comem mirtilos até ficarem com as línguas azuis. Deitam-se na relva suave, observam os pássaros que rasgam o céu e as distantes aldeias que brilham ao sol.
Oleksiy Skurativskyi, 39 anos, desdobra a bandeira do seu pelotão e tira uma foto com os seus filhos, de 7 e 11 anos. Numa pausa da linha da frente, tenciona enviar as fotos ao comandante – juntamente com uma promessa.
Algum dia, “depois da vitória”, diz, vão escalar juntos a montanha com a bandeira. Depois, vão assiná-la e deixá-la no topo. Os seus olhos enchem-se de lágrimas quando pensa nos soldados que não vão ver esse dia, esperando estar entre os que irão.
“Às vezes é quase intolerável estar na linha da frente”, diz. “Aqui, podes ver quão bonito e rico é o nosso país. É inspirado e limpa a tua mente. Dá-te uma forma positiva de olhar para o futuro.”
Olha para a vista uma vez mais: “As montanhas curam.”
Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post