O Coração Ainda Bate. A luz e os dias baços

Pode o amor ser uma finta à rotina? A crónica de Inês Meneses.

A paixão vivida - há uma chama que nunca se apaga. É um fogacho, uma labareda cuspida, um fósforo que, no impulso da luz, prometia tudo e que se consumiu por tão pouco. Breves clarões que nos lembram da intensidade partilhada. Acredito que a intensidade nunca é uma empresa unipessoal. Se não é difícil? É. Até porque vivemos reféns da memória e do medo de que o outro não guarde em si o mesmo espaço que lhe dedicámos. É proporcional a desproporcionalidade.

Vamos então da paixão ao amor. De que é que se alimenta o amor? Será do cuidado e da compaixão ou do confronto perante a aritmética falida da conjugalidade? Quantos dias baços? Quantas surpresas?

O amor é o cabelo ostensivamente sacudido da gola do casaco ou as pantufas que acabamos por esconder porque percebemos que, todos os dias, aquele par, tão gasto como nós, e que nos representa sem querermos, é posto à mesma hora, no mesmo sítio? Eu ainda não percebi se o amor é a condescendência ou uma finta na rotina. Um pontapé nas pantufas. Talvez ambos sejam válidos. O amor é, de todos os sentidos, o mais amplo. Cabe tudo sem sentido.

Hoje mesmo, com um amigo, falava daquilo que embacia o amor. Quanto tempo aguentamos com o amor embaciado? E depois, numa aberta inesperada, ele surge como novo em roupas antigas e nós somos outra vez levados por uma canção batida que faz sentido agora. Como há vinte anos. O que é válido? Aceitar o traje antigo disfarçado de novo ou perceber que realmente todos temos essa capacidade de nos renovarmos? Atenção, o amor é uma dieta que também só resulta mesmo quando há vontade para isso.

É muito difícil vermos a surpresa no outro se ele acorda todos os dias ao nosso lado. É preciso que, um dia, um de nós caia da cama para percebermos onde acaba o colchão.

É muito curioso que, nunca tendo sobrevivido a um amor longo, acabe sempre por viver os meus amores depois do seu fim. Todas as pessoas que um dia amei continuam a ser grandes amores na minha vida e, assim à distância, é mais fácil surpreenderem-me. Até pela negativa, quando me dizem para mudar o que sou. Como estou. Só um grande amor para saber o que nos pode dizer. Ainda que os amigos tenham a escala de um grande amor, só um amor maior tem a possibilidade para nos dizer verdadeiramente o que é transformador. Um dia fomos luz e depois baços. Só eles sabem de que matéria somos feitos. Às vezes conseguimos esconder isto dos amigos.

Os amores e o amor. E, depois, a paixão. Hoje parti para esta crónica com a noção de que todos nos lembramos, em algum momento, das paixões: elas visitam-nos de mansinho e, inesperadamente, para nos testarem o amor. As paixões surgem, insidiosas, com as suas memórias como se dissessem: “ainda estamos aqui. Tu não nos viveste em pleno”.

A paixão é para sempre porque nunca se viveu em pleno, até ao fim. Não chega nunca a ser baça. Cega-nos com a sua alegada perfeição, enquanto o amor empobreceu com o gasto que lhe demos. O gasto é vivê-lo todos os dias.

O amor e a paixão são ambos válidos. Preciso do amor para me situar e da paixão para saber que lado meu não obedece. Não há nada de errado nisto. A paixão descoordena-nos, o amor situa-nos. Se durante um amor se lembrarem de uma paixão não é sobressalto de maior. Faz parte desta coisa, ainda inexplicável, de estarmos vivos e aceitarmos a boleia do inesperado.

Escrever um romance continua a ser diferente de viver intensamente os romances. Sem dormir.

O coração ainda bate.

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