As crianças anseiam por limites
Nas famílias, assiste-se a uma crescente dificuldade em definir limites e em fazer cumprir regras, o que tem impacto nas escolas.
Concebida com a valiosa intenção de estimular a ternura, de fomentar a proximidade e de promover as explicações devidas às crianças, a corrente de parentalidade positiva pode ser associada a alguns excessos, ao ter desvalorizado a necessidade de estabelecer limites educativos. As consequências desta falta de limites e de regras depressa se fizeram sentir nas famílias e nas escolas, acabando por se estender às consultas de psicologia infantil.
Nas famílias, assiste-se a uma crescente dificuldade em definir limites e em fazer cumprir regras, o que tem impacto nas escolas. Com diversos alunos educados de acordo com esta corrente parental, os professores deparam-se com uma dificuldade acrescida em legitimar a sua autoridade e em fazer respeitar as regras da vida em grupo, investindo muito do seu tempo e energia na manutenção da ordem na sala de aula.
Por sua vez, as consultas de psicologia passaram a receber crianças com este tipo de problemáticas, tal como refere Caroline Goldman, psicóloga clínica de crianças e adolescentes, também responsável por um dos podcasts sobre psicologia e educação mais ouvidos em França. Na obra recentemente publicada em Portugal, com o título As crianças precisam de limites, dá conta de duas grandes mudanças verificadas recentemente no perfil das crianças seguidas em consultas de psicologia.
Por um lado, verifica-se um aumento das perturbações do comportamento infantil que se manifestam através de uma excitação constante e de uma acentuada intolerância à frustração, por vezes associadas à agressividade verbal ou física. Por outro lado, constata-se uma alteração no perfil familiar destas crianças. Enquanto antes provinham de famílias disfuncionais e apresentavam outro tipo de sintomas associados, como depressão ou insucesso escolar, atualmente os psicólogos recebem crianças mentalmente sãs, entusiastas, curiosas, afetuosas e inteligentes, com pais particularmente presentes, calorosos, realizados e envolvidos na educação dos seus filhos.
Paradoxalmente, segundo Goldman, estas crianças nunca tiveram falta de nada; pelo contrário, têm excesso de tudo. São crianças totalmente em excesso: demasiado ruidosas, demasiado intensas, demasiado faladoras, demasiado ansiosas, demasiado percetivas a nível sensorial, demasiado imediatistas e demasiado explosivas nas suas reações, frequentemente desproporcionais face ao sucedido.
Esta psicóloga clínica reflete sobre o fenómeno que, na sua perspetiva, poderá explicar o crescimento exponencial do número de crianças em excesso. Para o fazer, começa por clarificar quais os dois tipos principais de relações, por natureza bastante distintos, essenciais para estruturar psicologicamente uma criança, no sentido de a conduzir para a sua realização pessoal.
O primeiro tipo de relação emerge desde o nascimento do bebé e mantém-se ao longo do desenvolvimento da criança. Trata-se do conteúdo do psiquismo, constituído por experiências sensoriais satisfatórias, ligação emocional, confiança, ternura, prazeres partilhados e, ainda, pelo despertar do pensamento, da criatividade e da fantasia. Fundamental na medida em que gera os impulsos de vida e as emoções que estão na base da relação da criança com o mundo, este registo vai levá-la a ancorar-se firmemente na realidade, a criar instintos saudáveis de autoproteção e a desenvolver uma sólida segurança a nível afetivo.
A segunda fase, que tem início por volta de um ano de idade, diz respeito à criação do contentor, responsável por conferir um formato socialmente adequado aos movimentos psíquicos extraídos do conteúdo. Nesta fase, o desafio consiste em construir as fronteiras entre o eu interior e o mundo exterior, de modo a conseguir travar a impulsividade e a aprender a lidar com a frustração. A marcação de limites bem definidos, sólidos, consistentes e coerentes vai permitir que a criança se sinta segura, possa explorar toda a riqueza do seu conteúdo e desenvolva o seu encanto a nível social.
É precisamente esta segunda etapa que, na opinião de Caroline Goldman, poderá estar a falhar nos estilos educativos demasiados positivos ou, pelo menos, com uma interpretação excessiva dos seus princípios. Nas suas palavras, “o encontro estrutural com os contentores (limites) das crianças é tão importante como o trabalho sobre os seus conteúdos psicoafetivos, porque o impacto sobre a sua saúde psicológica será pelo menos tão decisivo”.
Privadas do encontro estrutural com os contentores, estas crianças anseiam por limites, pedindo insistentemente aos adultos que lhes digam até onde podem ir. Quando privadas continuadamente desses limites estruturantes, são movidas pelo desejo autocentrado, pelo imediatismo e pela impulsividade, ficando reféns das suas exigências. Esta “onda de desejo” que não se consegue conter nem adiar apela continuadamente a um constrangimento de ordem externa que não surge, pela simples razão de que deveria ter sido estabelecido na infância, através da educação, para que pudesse ser gradualmente integrado no funcionamento psíquico.