Neutro
Se o pronome masculino fosse realmente neutro, também deveria poder dizer-se “as senhoras” ou “as colegas” no caso de estar presente uma mulher, mesmo que a única, numa sala repleta de homens.
Se a utilização do pronome masculino como neutro fosse realmente neutra, se fosse apenas convenção a que se poderia fazer equivaler outra, simétrica, então também deveria poder dizer-se, sem deixar nenhuma pessoa incomodada, “as senhoras”, “as colegas”, “as amigas”, no caso de estar presente uma mulher, mesmo que a única, numa sala repleta de homens. Afinal, se é apenas uma convenção, poderia ser outra a cumprir o mesmo papel de referenciação neutra, não havendo motivo para melindre.
António Guterres criticou há dias a desproporção de representação de género nas intervenções da última Assembleia Geral das Nações Unidas – uma lista de duas centenas em que apenas um décimo era de mulheres. Apetece encorajá-lo a mudar o início das sessões: “Bom dia, sejam todas muito bem-vindas!”
Mas não deveria o neutro passar tão despercebido como o zero a ser o elemento neutro da adição? Verdade, mas a crítica é pouco justa. Se o uso neutro do pronome feminino é sentido como uma imposição injusta a uma multidão de homens acompanhados por uma minoria de mulheres, então a tese de que o uso “neutro” do pronome masculino fosse genuíno cai por terra. O neutro tem muito pouco de neutro (e de convenção). Aquela dificuldade em suportar o feminino como neutro deveria neutralizar o uso do masculino como neutro. Por razões de consistência, nem que seja com o mundo social, conclusão de uma reductio ad absurdum.
Mas mais do que encontrar a contradição, importa fazer sair a discussão do recinto fechado das convicções teóricas, das representações em conflito, dos medos que evitam o encontro e, assim, se acirram.
O choque tem isto de paradoxal – duas realidades embatem, mas não chegam nunca a experimentar encontrar-se. Importaria traduzir sentidos codificados em práticas de encontro, sem perder nada. Ir dissolvendo a inconsistência na prática de uma vez o neutro ser trabalho feito pelo pronome masculino, outra vez ser o pronome feminino a chegar-se à frente e outras vezes imaginarmos formas diferentes, criativas, de ser inclusivos sem excluir nada. E assim fazer-se um caminho em que acabamos a levar-nos mais a bem. Um uso do neutro que não elimina, mas se incorpora, que a cada passagem pelas palavras passa cada vez mais leve por nós, sem esquecer nada, como os neutrinos pelas coisas.
Quando dizemos que as palavras querem dizer, como se tivessem vontade, na verdade dizemos que elas só significam quando viajam até junto de quem as acolhe. Só no encontro as palavras dizem. Não é diferente com o pronome neutro numa Assembleia onde se discute o nosso amparo futuro.