Quem tem medo das rendeiras de bilros?
Com ou sem feminismo, com ou sem direitos laborais, direitos humanos, direitos cívicos, se há coisa que as mulheres sempre fizeram, em todas as sociedades, desde que o mundo é mundo, foi trabalhar.
Há dias, numa rede social, circulava um vídeo de uma mulher que censurava o movimento feminista por ter impulsionado o momento político e social que "forçou" as mulheres a trabalharem. Segundo este vídeo, que levava uns milhares largos de visualizações e likes, as mulheres passaram de um espaço seguro — o lar — para a sobre-exposição social, para o desgaste laboral, para a pressão da produtividade. Um pormenor, porém: as mulheres sempre trabalharam. Com ou sem feminismo, com ou sem direitos laborais, direitos humanos, direitos cívicos, se há coisa que as mulheres sempre fizeram, em todas as sociedades, desde que o mundo é mundo, foi trabalhar. Além do trabalho reprodutivo e de reprodução social, garantindo a manutenção das estruturas sociais e humanas, as mulheres sempre trabalharam, dentro e fora de casa. Se dúvidas havia, pelo menos no tocante a Portugal, Maria Lamas rebentou esse balão de delírio com um alfinete mais afiado que o das bordadeiras de Viana do Castelo no seu livro Mulheres do meu país (1948).
Diz-se à boca cheia que falar de mulheres está na moda. Isto deveria preocupar-nos a todos. Quando dizemos que falar de mulheres, de pessoas racializadas, de pessoas trans, está na moda, o que significa isso exatamente? Que, para o ano, a moda será outra? Qual? Falar de homens? De masculinidade? De branquitude? Que mais dia, menos dia, mulheres, pessoas queer e pessoas racializadas terão de voltar para as cavernas de onde saíram para continuarem a… trabalhar? A tecer colchas que representam o cosmos? A fazer bordados tão complexos que é preciso um modelo matemático para os explicar? A otimizar a educação das gerações seguintes através de modelos psicoafectivos a que chamamos "natureza", mas que, na realidade, foram desenvolvidos e aperfeiçoados pelo labor de quem gera o futuro?
Tal como sempre trabalharam, as mulheres também sempre produziram arte, numa proporção até impressionante face à quase total ausência de acesso a condições e a meios de produção artística. Falamos de acesso ao conhecimento, à aprendizagem de técnicas, a materiais, ao tempo disponível para a conceção e criação e, talvez o mais penalizador de todos, à permissão da sociedade para essa produção artística.
Dizíamos que sim, as mulheres sempre produziram Arte. E fizeram-no com os materiais a que tinham acesso, e no decurso das tarefas que lhes estavam destinadas: os tais bordados, o artesanato, as colchas, as canções de embalar, os brinquedos de pano. Formas de Arte. Muitas delas, património imaterial da Humanidade. Mas não só: produziram também a outra Arte, a arte masculina que habita as Histórias da Arte, os museus e os catálogos de leiloeiras famosas.
A título de exemplo, falemos de Helena Almeida, que nos conta que lhe disseram que o seu trabalho parecia o de um homem. Falemos de Sarah Affonso, a quem acusavam de pintar como o marido. Falemos de Rosa Ramalho, a quem perguntaram, com incredulidade, se tinha sido mesmo ela a criar as esculturas que hoje resgatamos com avidez dos louceiros dos nossos avós.
Mas falemos também de Sofonisba Anguissola, a quem seria impensável e intelectualmente desonesto não reconhecer o génio. Considerada, já no seu tempo, como uma das grandes pintoras renascentistas, o seu acesso aos materiais e às técnicas deveu-se à teimosia e visão do pai, que a enviou para o atelier de um conhecido pintor para que pudesse estudar. Anguissola foi uma exceção apenas na medida em que não se permitia a uma mulher ocupar dessa forma o espaço público e de produção artística.
A profusão de mulheres artistas, de artistas queer e racializadas dos últimos anos não corresponde a um surto de artisticidade que contaminou seletivamente parte da Humanidade através das águas municipalizadas. Corresponde antes a um trabalho programático de democratização do acesso às condições indispensáveis para a produção artística. Corresponde à democratização das plataformas de divulgação. Corresponde a uma profunda mudança política nas sociedades dos últimos cem anos. E a política não é uma moda. As mulheres não são uma moda. As pessoas queer não são uma moda. As pessoas racializadas não são uma moda. A Arte não é uma moda.
Mas o acesso é, ainda, desigual. A representatividade necessária para que a paridade aconteça, para que seja uma realidade — e não uma moda, como nos ameaçam —, depende de diversos mecanismos. Um dos mais importantes será, porventura, o da educação, nomeadamente a educação para a dúvida, para o questionamento. Nenhuma mulher, pessoa queer ou racializada teria, alguma vez, produzido Arte se não tivesse questionado — apenas para escolher, depois, transgredir — essa obscura ordem cósmica que, durante séculos, negou às mulheres a partilha igualitária do espaço público.
Neste particular da educação, em Portugal, falemos de Madalena de Azeredo Perdigão, nome que devia constar da lista de referências obrigatórias pela revolução que operou no país: figura-chave para a Fundação Calouste Gulbenkian e para o universo das artes em Portugal, promoveu o conceito de educação pela arte e introduziu uma profunda modernização do panorama artístico português através dos vários cargos que desempenhou na fundação — nomeadamente enquanto a primeira diretora do Serviço de Música e, mais tarde, diretora do programa ACARTE, no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian.
A ideia de educação pela arte tornou-se uma das principais ferramentas de democratização cultural do Portugal pós-ditadura, assumida como meio de formar toda uma nova geração de crianças para uma cidadania livre depois de 48 anos de ditadura. A interiorização, pela educação, do questionamento sistemático no modo de observar o mundo transfigura por completo a experiência de estar vivo.
Se, por um lado, é com revolta que recebemos a perceção da injustiça, por outro, torna-se evidente a verdadeira paleta de cores com que poderíamos estar a trabalhar. O mundo é mais amplo e diverso do que aquilo que nos é dado a conhecer por uma elite restrita e restritiva, nomeadamente a que faz a História da Arte. É nesse ponto particular que A História da Arte sem homens, de Katy Hessel, surge como fundamental, tomando como ponto de partida uma pergunta que há poucas dezenas de anos dificilmente teria acontecido: "Se tivéssemos de nomear dez ou 20 artistas mulheres, conseguiríamos fazê-lo?"
Se a autora, formada em História de Arte, teve dificuldade em fazê-lo, como responderia o visitante domingueiro dos museus da sua área? E se não conseguimos pensar em quase nenhuma mulher artista, nem as encontramos nas imensas coleções dos museus mais prestigiados, será porque não existem? Em 1989, o coletivo ativista Guerrilla Girls denunciava esta situação através de um trabalho de mediatização da desigualdade nos museus, chamando a atenção para o facto de apenas 5% das obras expostas no The Metropolitan Museum of Art, em Nova Iorque, serem de mulheres; no entanto, cerca de 85% dos nus eram de modelos femininos, levando à pergunta justa que lançaram: "Será que uma mulher tem de estar nua para entrar num museu?"
Este é, ainda, o paradigma vigente: uma desproporção gritante entre a percentagem de obras de homens artistas e de mulheres artistas nos museus contemporâneos. No entanto, vivemos um momento singular neste caminho, onde as práticas museológicas e de curadoria que procuram contrariar séculos de história de arte sem mulheres começam a ter voz própria. Apesar de ainda estar quase tudo por fazer, o livro de Katy Hessel dá mais um passo nesta política dura da invisibilidade cultural.
Texto de apresentação do livro História da Arte sem homens, no dia 01/10/2024, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990