O Boi-Cavalo vai fechar e fala-se de crise na restauração. “A bolha rebentou”, diz Hugo Brito
“O problema de Lisboa e de muitas cidades portuguesas é que não existe planeamento central”, defende o proprietário do restaurante lisboeta Boi-Cavalo, que vai fechar no final do mês.
No final de Agosto surgiu a notícia: o Boi-Cavalo, desde há uma década um dos restaurantes mais criativos de Lisboa, localizado em Alfama, vai fechar no final de Outubro. Somada ao fecho do Izcalli, o restaurante mexicano de Ivo Tavares, a notícia levou a reportagens nos jornais sobre uma crise na restauração em Portugal, sobretudo nas grandes cidades — uma impressão confirmada por outros chefs ouvidos nesses artigos.
Mas esta parece ser uma crise com características particulares, porque não afecta toda a restauração. Serão apenas os projectos independentes de cozinha de autor os atingidos? Há restaurantes a mais numa cidade como Lisboa? E, por outro lado, há poucos restaurantes onde os portugueses consigam ir? No dia 29 de Setembro, num dos palcos do Congresso de Cozinha, em Oeiras, conversámos com Hugo Brito, o fundador do Boi-Cavalo, uma conversa que agora reproduzimos.
A pergunta que é o pretexto para esta conversa aqui no Congresso de Cozinha é: existe uma crise na restauração nacional? Vemos restaurantes cheios e vemos outros a fechar. Há crise ou não?
Às vezes, é difícil contrastar o que é a realidade no terreno com os números que são divulgados quase mensalmente pelo Turismo de Portugal, em que parece que todos os meses se batem recordes do número de turistas e de chegadas ao aeroporto de Lisboa. O que me parece é que há uma mudança no perfil do turista e a experiência que outras cidades já tiveram em termos de turismo de massas, nós estamos a começar a senti-la na pele.
As pessoas existem, agora se são público que suporte um ecossistema de restaurantes desejável para nós, já é outra questão, que não tem sido suficientemente abordada. E, às vezes, é difícil abordá-la enquanto existir este regozijo geral perante os números de chegadas e uma taxa paga pelos turistas à câmara municipal que enche os bolsos à edilidade sem ser necessário fazer uma análise de quem são e o que trazem para a cidade. Para não falar das consequências a longo e a médio prazo quer para a manutenção do ecossistema dos restaurantes quer para a vida quotidiana dos habitantes de Lisboa.
Resumindo, em termos do que eu considero ser um ambiente saudável e interessante, é legítimo falar da crise da restauração.
Qual foi a evolução da situação com os clientes portugueses?
Os trabalhadores dependentes do Estado, que são uma fatia grande da população activa, tiveram uma perda salarial, sem um aumento real dos salários há uns sete ou oito anos, e isso tem consequências. Por outro lado, pós-covid e a invasão russa da Ucrânia, houve uma subida generalizada na Europa das taxas de juro que diminuiu muito aquilo que é o rendimento disponível dos portugueses. Perante o aumento das despesas familiares, o primeiro sítio em que as pessoas cortam são os luxos. Jantar fora em restaurantes, principalmente se forem de autor ou mais caros, é uma das primeiras coisas a cortar.
Ao mesmo tempo, há um aumento muito grande de oferta de restauração em Lisboa, e não há qualquer controlo de uma actividade económica tão central para o PIB português, nem justificação para que seja tão desregulada e desacompanhada como é.
No caso do Boi-Cavalo, como é que as coisas mudaram em dez anos? Quem eram os seus clientes no início, qual era o público-alvo e como é que isso se foi alterando?
Partimos de uma ideia simples, um bocado ideológica e idealista, de que cada cidade é um todo e não tens de associar um certo tipo de restaurantes a um certo tipo de bairros. Podias povoar a cidade inteira com uma oferta gastronómica interessante sem necessariamente estar num bairro em que as rendas são altas e em que as próprias características do bairro façam uma triagem do cliente. No fundo, era ter uma cozinha de autor, de uma maneira mais descontraída e colocá-la num bairro pouco óbvio.
Em Lisboa, temos um pouco essa lógica de centro comercial em que ali é o sítio disto, ali vamos às compras, ali são os restaurantes. Nos anos 90 e princípio dos anos 2000, a cidade era um bocadinho organizada dessa maneira e nós queríamos pulverizar um pouco isso.
A ideia era um restaurante de autor, não de luxo — são duas coisas diferentes — em Alfama. E queríamos a clientela portuguesa. Sabíamos que havia estrangeiros e queríamos também que o cosmopolitismo desse cliente permeasse a experiência, mas queríamos que fosse comida de autor para toda a gente. Não seria preciso estar seis meses a poupar para ir lá. Há dez anos era mais ou menos isso que acontecia.
Sentia que havia público para isso e confirmou que havia?
Durante os primeiros três anos, isso acontecia, embora tenha sido sempre um restaurante em luta, sem meses descansados. Depois aconteceram uma série de coisas em Lisboa que começaram a pôr esse trabalho em causa. Agora que tomei a decisão de fechar, e olhando para trás, apercebi-me que houve momentos específicos em que eu tinha as ferramentas para ler a situação e houve algumas adaptações que não fiz, muitas delas por teimosia, por não querer afastar-me desse propósito original. Fui às vezes um bocadinho cego em relação à realidade.
Por exemplo?
Mantivemos demasiado tempo o menu de degustação. Devíamos ter percebido que não era a situação ideal para o que nós apresentávamos. Podíamos ter comunicado mais claramente que éramos um sítio descontraído. Se calhar, a teimosia de manter-nos em Alfama durou mais do que devia.
Se tivesse mudado de bairro, qual teria sido a opção?
Se o tivesse feito, ter-me-ia mantido fiel à ideia inicial. Quando abrimos, Alfama começava a ser povoada por jovens profissionais, pessoas que até tinham um rendimento mais ou menos interessante. Se tivéssemos reaberto na Estefânia, Campo de Ourique, Alvalade, bairros que têm uma vida de bairro, se calhar ter-nos-íamos mantido fiéis a essa ideia de uma cozinha alicerçada na cidade de Lisboa, potencialmente para todos.
Houve um momento em que vocês viram claramente os portugueses a desaparecer e a começarem a ser substituídos por estrangeiros?
Sim, no início éramos maioritariamente frequentados por portugueses, ao fim do terceiro ano começou a aumentar o número de estrangeiros, e, mesmo sem contar com a perda dos últimos anos, o poder de compra dos portugueses não é assim tão grande. Ou consegues conquistar clientes e torná-los fiéis nos primeiros dois ou três anos, e tivemos a sorte de conquistar alguns assim, ou então…
O que faz uma pessoa ir a um restaurante é muito complexo. Tem a ver com coisas como ‘gosto desta comida’, mas também ‘gosto de ser visto neste sítio e quero que as pessoas saibam que gosto deste tipo de comida’. E, numa cidade em que abrem restaurantes todas as semanas, parece que há uma urgência em ir aos mais recentes. Parece que uma pessoa está sempre ofegante a correr atrás dos últimos restaurantes.
Há um momento em que tens que olhar para isto objectivamente como um negócio, perceber se consigo dormir à noite descansado sem me preocupar com fornecedores, ou já é um esforço tal que sentimos que já não temos energia para isso.
Se tivesse energia, que modelo poderia funcionar para o restaurante se reinventar?
Não sei. Há uma coisa que me está a causar muita confusão neste momento que é o ressurgimento deste interesse pelas tascas. Não estou necessariamente a dizer que as duas coisas estão relacionadas, mas isto acontecer num momento em que a cidade tem uma população migrante muito grande e em que eu ouço mais impropérios racistas na rua, se calhar não são coisas que estejam dissociadas. O facto de sentir uma insatisfação da parte dos lisboetas em relação à população estrangeira, sejam imigrantes, sejam pessoas que escolheram viver cá, e ouvir ao mesmo tempo um discurso que enaltece a ideia de recuperar e manter o tradicional, é uma coisa que me lembro de ter ouvido noutras partes.
Lisboa perdeu um bocadinho a ideia de quem é que nós somos e não acho que seja uma coisa que se vá recuperar rapidamente, esse conforto na nossa pele. E há coisas que me estão a dar arrepios.
Há um número limitado de pessoas que se interessam de forma mais profunda por gastronomia e que seriam o público de um restaurante de autor. São esses que agora se aproximam da tasca?
Não necessariamente. As pessoas que tinham interesse pela gastronomia continuam a tê-lo, só que não aumentaram. São os mesmos. Tenho a impressão de que os portugueses não ficaram mais curiosos ou mais interessados, pelo contrário, tornaram-se mais exigentes sem razão para tal, sem uma base de conhecimento. As pessoas que encontras num evento gastronómico, numa feira, num restaurante são sempre as mesmas. As que há dez anos estavam entusiasmadas com o Boi-Cavalo são as que encontro agora no Canalha [o restaurante de João Rodrigues, em Lisboa]. Não me parece que a comunidade tenha crescido ao mesmo ritmo que o número de restaurantes cresceu.
Se um restaurante como o Boi-Cavalo abrir hoje vai ter a mesma história, o mesmo público interessado que vocês tiveram no início?
Acho que era impossível. Abrimos o Boi-Cavalo pelo preço que custava comprar um Opel Corsa. Entre espaço, obras, equipamento, stock, foram uns 27 mil euros. Hoje, por 27 mil euros, mudava umas tomadas e pintava as paredes. Não tínhamos uma agência para comunicar. Distribuímos pelas redacções sacos de plástico com costeletas de cavalo a vácuo e com uma receita. Isto era a nossa máquina comunicacional na altura.
Hoje já não seria possível. Para conseguires que a tua voz seja ouvida são precisas ferramentas que é muito difícil um pequeno restaurante ter. Em meia dúzia de meses tínhamos o restaurante cheio. Hoje, sem uma reputação que te preceda, sem uma máquina comunicacional e uma capacidade de investimento grande, era difícil.
Como é que se poderia controlar esta explosão no número de restaurantes a abrir?
Isso são questões políticas. O problema de Lisboa e de muitas cidades portuguesas é que não existe planeamento central. Se há uma entidade que atribui licenças, ela tem acesso aos números de densidade populacional em cada bairro e a que negócios estão abertos.
Se a câmara sabe que num bairro onde vivem 14 mil pessoas há x espaços comerciais, e se queremos ter uma ideia de cidade habitável, não acho disparatado haver alguma parcimónia na atribuição de licenças. Se calhar, mais um restaurante nesta rua onde já existem 14, neste bairro em que vivem 12 mil pessoas, já chega. Podem atribuir essa licença quando um restaurante fechar. A cidade só cresce organicamente se não tiveres um restaurante por cada dez habitantes sem que exista uma papelaria, por exemplo. Isto não é uma cidade para os habitantes.
Por outro lado, se as pessoas que trabalham na farmácia têm de ter uma formação, a pessoa que te serve comida não teve de ter qualquer curso? Isto faz sentido?
As licenças estariam dependentes disso também?
Não me parece que as pessoas que confeccionam alimentos que têm influência na nossa saúde não tenham de ter algum tipo de formação. E isso seria uma maneira de tornar mais difícil abrir restaurantes, o que não me parece uma má ideia. E haver uma ideia clara da parte da cidade sobre onde eles podem ou não abrir também não me parece má ideia. O Boi-Cavalo vai fechar agora, mas todos os dias ouço alguém dizer que também irá fechar. Vamos ser um dos primeiros. Espero não estar a ser demasiado pessimista, mas a bolha rebentou e vamos todos ter de lidar com isso.
Este texto resulta de uma parceria entre o PÚBLICO e o Congresso de Cozinha.