Já e ainda

Os cafés já estão cheios de gente à procura de bebidas quentes. Mas as praças ainda têm pessoas que se sentam ao sol. As crianças já estão na escola. Mas ainda há areia das férias no carro.

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"A vida precisa do empurrão do “já” e do compasso de espera do “ainda”." José Sérgio
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A chegada de uma estação é medida pelos “jás” e pelos “aindas”. Às 19h: Está de noite. “Mas já?” Ao acordar: Está de noite. “Mas ainda?”

As abóboras já se empoleiram nas prateleiras do supermercado. Mas ainda restam morangos. Já há orvalho de manhã. Mas ainda há trilhas secas pelo sol das últimas semanas de calor. Os cafés já estão cheios de gente à procura de bebidas quentes. Mas as praças ainda têm pessoas que se sentam ao sol. As crianças já estão na escola. Mas ainda há areia das férias no carro. As mantas já são dobradas no sofá, à espera de uma tarde preguiçosa. Mas as cadeiras de jardim ainda estão lá fora. Já amadurecem as romãs e os figos. Mas ainda é tempo de colher as últimas amoras. As uvas já são apanhadas para o vinho. Mas ainda há rosas vermelhas nos canteiros.

O “já” tem-se feito valer. As folhas de plátano já cobrem o chão. As castanhas assadas já aparecem nas ruas. E o pior “já” de todos: Já há pessoas a falar do Natal.

Uso o “ainda” para travar o “já”. Ainda alguém se põe em bicos dos pés para arrancar o louro da árvore. Ainda há uma conversa a propósito de um isqueiro. Ainda se pensa naquela pessoa. Ainda há coisas sem nome. Ainda há coisas por dizer. Ainda há laranjas esverdeadas agarradas aos ramos, como eu me agarro aos “aindas”.

Mas não é só no Outono que o “já” e o “ainda” travam a sua luta. As pessoas dividem-se entre aquelas que já acordaram, já saíram da cama, já tomaram café, já resolveram metade do dia antes de nós conseguirmos abrir os olhos, e aquelas que ainda estão a decidir se vale a pena levantar-se, que ainda têm os lençóis colados ao corpo, e que ainda só sonham com o primeiro café.

A guerra do snooze do despertador é uma batalha entre “já” e “ainda”. Já são sete da manhã e o alarme toca, mas ainda dá para dormir uns minutinhos.

O mundo divide-se entre os que já chegaram e os que ainda estão a caminho. Entre os que já decidiram o que vão comer e os que ainda não pegaram na ementa. Entre os que perguntam se o trabalho já está feito e os que ainda nem começaram. Entre os que ao segundo date já sabem o nome dos futuros filhos e os que ainda querem conhecer melhor o outro. Entre os que dizem que já está tarde e os que dizem que ainda falta a sobremesa. Entre os que ainda ficam e os que já vão.

A vida precisa do empurrão do “já” e do compasso de espera do “ainda”.

No trabalho, o "já" é entrega e produtividade, e o "ainda" é o espaço da criatividade e da reflexão.

O equilíbrio entre os dois tempos é o que procuro. Quando dou por mim com demasiados "jás", a correr de tarefa em tarefa, tenho de chamar o “ainda”. Mas muito "ainda" paralisa e deixa que oportunidades escapem.

Preciso do "já" para me lembrar de que há coisas que precisam de ser feitas agora. Mas também preciso do "ainda", para pensar. E porque o "ainda" é o que permite mudar a direção.

Na escrita é fundamental que haja muito “ainda” antes do “já”.

Primeiro, ainda. Depois, já. O segredo está em saber quando passar do ainda para o já. É isso que estou a tentar perceber.

Sim, já acabei a crónica. Mas ainda não disse tudo.

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