Despeço-me hoje da minha professora de natação. É ela que me deixa, indo navegar para outras águas. No dia em que me comunicou a decisão, fui para casa a choramingar, como se tivesse perdido um amigo na escola. A tristeza passou depois, entre novas braçadas.
A alegria que me trouxe nestes dois anos não caberia nas piscinas todas da cidade. Recordo, em imagens, como se fossem dispositivos que a memória intercala, os momentos que atravessámos: do meu pânico, ao prazer, da minha quase insanidade feliz, ao momento em que chorei dentro de água pela morte da minha mãe. Apercebi-me agora mesmo de que ela se vai embora, na semana em que assinalamos os dois anos da partida precoce da nossa mãe. Como se me dissessem que tenho de flutuar em qualquer circunstância. Neste dois anos, a Inês (era impossível esquecermos o nome uma da outra) foi mãe e eu fiquei sem a minha. Celebrámos ciclos de vida, comovemo-nos, rimos. Quando há dias, ela, entristecida, me dizia: “somos só números”, eu rebati e posso agora elaborar: não somos só números. Seremos aparentemente irrelevantes para muitos que não percebem o poder da empatia e da proximidade. Eu desconheço o nome do chefe da Inês, mas dela vou lembrar-me sempre. E irei ao seu chamamento, esperando que não tarde, que aconteça outra vez, mais dia, menos dia.
Tenho 52 anos e estou muito capacitada para sentir, mas, como já escrevi aqui anteriormente, sou pouco hábil nas funções mais básicas do quotidiano. Levo tempo a descobrir como é que se tira uma garrafa de água da máquina ou se abre o cacifo do ginásio. Sou essa até deixar de ser e é fabuloso aprendermos coisas que antes nos incomodavam, que podiam estar comigo ao acordar por não saber ainda como as iria ultrapassar, e depois consigo e sinto-me crescida. Crescida sem idade. Aconteceu-me tudo isso nesta ida forçada para a piscina, entre o vapor que cobre os balneários e o cheiro a cloro que se entranha. Descobri esse prazer de ser uma no meio de muita gente que ali está em busca de qualquer coisa que melhore momentaneamente a sua vida. Ver corpos velhos de peles que se dobram como roupa, miúdas sem um vinco, gente que faz do cloro o seu oxigénio diário, vejo de tudo, assimilo mais. Aprendo o dobro. Tudo isto me tem feito estranhamente mais humana. Mas nada teria acontecido sem a Inês, sem ela a gritar comigo: “espuma, espuma, espuma” e eu a querer-me rir, mas a contrair a cara, sem me lembrar que eram os pés que deviam estar a trabalhar e não a cara em esforço.
Vir para a piscina foi como voltar à escola. Recordei há dias, com alguém do meu tempo de criança, o dia em que a minha mãe decidiu que estava na altura de eu cortar o cabelo curto e fui para o liceu, entregue a um mundo que desconhecia, com 11 anos e um cabelo que fazia com que toda a gente achasse que eu era um rapaz. Lembro-me nessa altura de querer ser invisível. Exactamente como quando cheguei à piscina e, mesmo de cabelo longo, queria que ninguém me notasse. Queria chegar e não ver ninguém (como no liceu), julgando nunca conseguir ultrapassar pequenos obstáculos dos quais os outros se podem rir do alto da sua leviana sabedoria.
Podemos viver tudo de novo, até quando julgamos que já está tudo mais do que vivido. Que boa tem sido esta aprendizagem. Observar as mulheres que já viveram tanto, desprendidas de qualquer vaidade. Ver as mais novas tão focadas na sua imagem. Perceber a forma como os homens são educados para serem tão pouco gentis (percam uns minutos a vê-los na água, como se atiram, como combatem a água, aliás como tudo é uma luta constante). Eu tenho trazido grandes lições para casa, que não se esgotam na piscina. Claro que não somos só números, professora. Somos gente que precisa de seguir os outros, aprender com eles, até para não ser igual.
Enquanto me seco na toalha, observo em silêncio tantas vidas desenhadas em corpos tão diferentes. Parte do fascínio da nossa existência passa por essa observação silenciosa que nos traz tantas palavras e sensações novas.
Agora vou ficar por aqui nas considerações. Aguarda-me a última lição. Já sabe que, na sua ausência, vou eu própria gritar, de cara contorcida, “espuma, espuma, espuma!”.
O coração ainda bate.