Hitler é tendência no TikTok — e neonazis querem torná-lo uma figura simpática

Vídeos de discursos em inglês são gerados com Inteligência Artificial, e grupos e figuras de extrema-direita estão a utilizá-los para angariar seguidores.

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As publicações, que recorrem a ferramentas baratas e populares de clonagem de voz por IA, suscitaram elogios nos comentários no X e no TikTok Unsplash
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Extremistas estão a usar Inteligência Artificial (IA) para reanimar a imagem de Adolf Hitler online, junto das gerações mais jovens, enquadrando o líder nazi alemão que orquestrou o Holocausto como uma figura “incompreendida”, cujas mensagens anti-semitas e anti-imigrantes têm vindo a ecoar na política actual.

Em publicações de áudio e vídeo que atingiram milhões de espectadores no último mês no TikTok, X, Instagram e YouTube, a voz clonada por IA do führer treme e cresce à medida que este apresenta versões em inglês de alguns dos seus discursos mais notórios, incluindo o discurso no Reichstag em 1939, anunciando o fim do povo judeu na Europa. Algumas pessoas, procurando difundir a prática de fazer estes vídeos, organizam formações online.

As publicações, que recorrem a ferramentas baratas e populares de clonagem de voz por IA, suscitaram elogios nos comentários no X e no TikTok, como “Tenho saudades do tio A”, “Ele era um herói” e “Talvez ele NÃO seja o vilão”. No Telegram e na dark web, os extremistas gabam-se do facto de os discursos manipulados por IA serem uma forma cativante e simples de reacondicionar as ideias de Hitler de forma a radicalizar os jovens.

“Este tipo de conteúdo está a disseminar redpills à velocidade da luz para audiências maciças”, publicou o American Futurist, um site que se identifica como fascista, no seu canal público do Telegram a 17 de Setembro, utilizando uma expressão que descreve a reformulação dramática da visão do mundo de alguém. “Em termos de propaganda, é incomparável.”

A propaganda — documentada em vídeos, mensagens de fóruns e gravações de ecrã de actividades neonazis partilhadas exclusivamente com o The Washington Post pelo Instituto para o Diálogo Estratégico (ISD), uma organização sem fins lucrativos, e pelo site Intelligence Group está a ajudar a alimentar um ressurgimento do interesse online por Hitler na direita americana, dizem os especialistas.

Num relatório publicado esta sexta-feira, os investigadores do ISD descobriram que os conteúdos que glorificam, desculpam ou traduzem os discursos de Hitler para inglês registaram cerca de 25 milhões de visualizações no X, TikTok e Instagram desde 13 de Agosto.

Os vídeos estão a ganhar tracção à medida que o ex-Presidente Donald Trump e o seu companheiro de candidatura republicano, o senador JD Vance, do Ohio, avançam com teorias da conspiração populares entre as comunidades neonazis online, incluindo alegações infundadas de que os imigrantes haitianos no Ohio estão a comer animais de estimação.

O desafio da moderação de conteúdos

Os especialistas afirmam que a última geração de ferramentas de IA, que conseguem gerar imagens, vozes e vídeos realistas em segundos, permite que grupos marginais dêem uma nova vida a ideologias abominadas, apresentando oportunidades de radicalização e desafios de moderação para as empresas de redes sociais.

“Permite um novo tipo de envolvimento emocional que pode ser muito mais sedutor para uma nova geração”, afirma Emerson T. Brooking, membro sénior residente do Laboratório de Investigação Forense Digital do Conselho do Atlântico.

No ano passado, um utilizador organizou uma transmissão em directo no site de partilha de vídeos Odysee, onde ensinou a utilizar uma ferramenta de clonagem de voz de IA da ElevenLabs e software de vídeo para criar estes conteúdos. Em cerca de cinco minutos, o utilizador criou um clone de voz de Hitler que parecia estar a proferir um discurso em inglês, queixando-se de que os judeus lucravam com o sistema capitalista.

O utilizador, que usa a alcunha OMGITSFLOOD e é identificado como um “proeminente criador de conteúdos neonazis” pelo site Intelligence Group, que vigia a actividade online de supremacistas brancos e jihadistas, afirmou na transmissão em directo que Hitler é “um dos melhores líderes que alguma vez existiram”. O utilizador acrescentou que esperava inspirar um futuro líder como Hitler, que pode até “votar em Trump”, mas que “ainda não foi influenciado”.

Artemis Seaford, vice-presidente de segurança de IA da ElevenLabs, disse que a empresa proíbe o uso das suas ferramentas para criar conteúdo violento, de ódio ou de assédio. Depois de o Washington Post ter sinalizado o vídeo da transmissão ao vivo junto da ElevenLabs, Seaford disse que a empresa baniu o utilizador da plataforma. (A ferramenta de voz IA da ElevenLabs foi usada por um agente de campanha democrata no início deste ano para falsificar a voz do Presidente Joe Biden).

Quer a plataforma Odysee, quer o utilizador OMGITSFLOOD não responderam aos pedidos de comentário do Washington Post.

A criação do vídeo exigiu apenas uma amostra de alguns segundos do discurso de Hitler, retirado do YouTube. Sem IA, a falsificação teria exigido capacidades avançadas de programação. Alguns especialistas em desinformação e discurso de ódio afirmam que a facilidade de uso da IA está a potenciar a disseminação de conteúdos anti-semitas online.

“Agora é muito mais fácil criar e disseminar essas coisas”, disse Abbie Richards, investigadora de desinformação na organização sem fins lucrativos de esquerda Media Matters for America. “Quanto mais se publica, maiores são as probabilidades de isto chegar a muito mais pessoas do que alguma vez chegaria.”

Os neonazis estão constantemente à procura de maneiras para “forçar” as suas narrativas no discurso dominante, explicou Rita Katz, directora executiva do site Intelligence Group. A IA ajuda criando mensagens que captam a atenção das pessoas, acrescentou.

“Esses vídeos dissimulados de Hitler feitos com IA prendem a atenção de utilizadores com um pouco de curiosidade e depois levam-nos a ouvir um monstro genocida”, disse Katz.

No TikTok, X e Instagram, os discursos de Hitler gerados por IA não costumam ter as marcas características da propaganda nazi. Um vídeo publicado no TikTok em Setembro mostrava a silhueta de um homem parecido com Hitler, com as palavras “Ouve só”.

Sobre uma batida instrumental lenta, uma voz gerada por IA de Hitler fala em inglês na sua cadência característica, recitando excertos do seu discurso de 1942 comemorando o Putsch da Cervejaria, um golpe nazi falhado em 1923 que catapultou Hitler para uma posição proeminente. O vídeo, que já não está online, teve mais de um milhão de visualizações e 120 mil gostos, segundo a Media Matters for America.

Os discursos hitlerianos em IA podem ser eficazes como ferramentas de radicalização, mesmo quando não são acompanhados de comentários explicitamente pró-Hitler, disse Isabelle Frances-Wright, directora de tecnologia e sociedade do ISD. “Há uma grande diferença entre ler uma tradução do alemão dos discursos de Hitler e ouvi-lo dizê-los de uma forma muito emotiva em inglês”, explicou.

Frances-Wright comparou-os com os vídeos que se tornaram virais no TikTok no ano passado, em que criadores de conteúdos liam excertos do manifesto “Carta à América”, de Osama bin Laden, suscitando respostas de jovens americanos como: “OMG, éramos nós os maus?”

No TikTok, os utilizadores podem facilmente partilhar e acrescentar aos vídeos, utilizando as funcionalidades de “dueto” da aplicação, que permitem às pessoas publicar o vídeo original juntamente com um vídeo da sua reacção ao mesmo, disse Richards. Como os vídeos não contêm logótipos explicitamente terroristas ou extremistas, são “extremamente difíceis” de policiar pelas empresas de tecnologia, acrescentou Katz.

Tracy Clayton, porta-voz da Meta, disse que a empresa removeu os vídeos do Instagram depois de ser alertada pelo Washington Post, porque violavam as políticas de conteúdo da empresa. Nick Smith, porta-voz do TikTok, disse que a rede social removeu todos os vídeos que o Washington Post sinalizou junto da empresa porque eles violavam as directrizes da comunidade do TikTok. Jack Malon, um porta-voz do YouTube, disse que as directrizes da comunidade do site “proíbem conteúdo que glorifica ideologias como o nazismo, e que [removeram] o conteúdo sinalizado pelo Washington Post”.

O relatório do ISD aponta que, no seu conjunto de dados, o conteúdo pró-Hitler alcançou mais público no X, onde também era mais provável que fosse recomendado pelo algoritmo do site. O X não respondeu ao pedido de comentário.

A influência da propaganda online na política

O número de grupos neonazis activos na América diminuiu desde 2017, de acordo com relatórios anuais da organização sem fins lucrativos Southern Poverty Law Center, em certa medida como resultado da pressão exercida por parte da polícia após o protesto mortal Unite the Right que aconteceu nesse ano, em Charlottesville.

Mas isso não significa que o nazismo esteja em declínio, constata Hannah Gais, analista sénior de investigação do Southern Poverty Law Center. Os extremistas de direita estão a voltar-se para fóruns online, em vez de grupos oficiais, para se organizarem e gerarem conteúdo, utilizando as principais plataformas de redes sociais para alcançar um público mais vasto e recrutar novos seguidores.

Embora seja impossível quantificar o impacto no mundo real da propaganda de extrema-direita na Internet, segundo Gais, é possível comprovar a sua influência quando figuras proeminentes, como o conservador Tucker Carlson, o bilionário Elon Musk e o conselheiro de Trump Stephen Miller defendem elementos da teoria da conspiração anti-semita da "grande substituição", ou quando atiradores em massa em Buffalo, El Paso e Christchurch, na Nova Zelândia, a citam como inspiração.

O relatório do ISD concluiu que as publicações que glorificam ou defendem Hitler aumentaram no X este mês, depois de Carlson ter publicado uma entrevista com Darryl Cooper, um revisionista do Holocausto, que Musk republicou e considerou que “vale a pena ver”. (Mais tarde, Musk apagou o seu post.)

Carlson, Musk e Miller não responderam aos pedidos de comentário do Washington Post.

No início deste ano, o conspiracionista pró-Trump Dominick McGee publicou no X uma recriação áudio em inglês gerada através de IA do discurso de Hitler no Reichstag em 1939, que obteve 13 mil partilhas, 56 mil gostos e mais de dez milhões de visualizações, de acordo com as métricas do X. (Os especialistas referem que as contagens de visualizações no X podem estar inflacionadas em comparação com as de outros sites.)

“Esta tradução de IA dá aos visualizadores um olhar sobre a mente de Hitler”, escreveu McGee, cuja conta no X foi reactivada de forma controversa no ano passado por Musk, depois de ter sido suspensa por ter publicado um vídeo de abuso sexual de crianças. Apesar de a publicação de McGee não apoiar as opiniões de Hitler, muitas das respostas indicavam aprovação, enquanto outras pediam traduções do discurso para francês, árabe e bengali.

Jared Holt, investigador sénior do ISD e co-autor de um relatório recente sobre a ascensão do nacionalismo branco no TikTok, afirmou que os extremistas estão muitas vezes entre os primeiros grupos a explorar tecnologias emergentes, que muitas vezes lhes permitem contornar as barreiras que bloqueiam este tipo de conteúdos nas plataformas.

Segundo Holt, não se pode partir do princípio de que todos os que vêem ou partilham um vídeo ou um meme sobre Hitler gerado através de IA concordam com ele — alguns podem apenas achá-lo engraçado ou ousado. “Mas, no campo mais amplo da política, pode ter um efeito de dessensibilização ou normalização se as pessoas encontrarem este conteúdo repetidamente”, disse.


Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

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