Aguiar-Branco pede que OE2025 não seja “transformado numa moção de censura”
O presidente do Parlamento olha para o consenso entre PSD e PS para a sua eleição para questionar por que não podem os partidos colocar-se de acordo agora, já que o assunto orçamento é fundamental.
Foi ministro da Justiça de Santana, da Defesa de Passos Coelho, esteve alguns anos dedicado à advocacia e regressou para ser a segunda figura do Estado, como presidente da Assembleia da República (AR), depois de uma eleição atípica, faz hoje seis meses. Em entrevista ao programa Hora da Verdade do PÚBLICO e da Rádio Renascença, José Pedro Aguiar-Branco questiona: "Porque não chegar a consenso que o povo português espera que tenhamos?"
Dentro de pouco mais de um mês, o Parlamento vai votar na generalidade o Orçamento do Estado para 2025 (OE2025). Pelo que vê e ouve... vai ser chumbado?
Eu espero que não seja chumbado. Não podemos deixar que se transforme esta situação numa moção de censura e, portanto, que não tenha a lógica daquilo que é a discussão de um orçamento. O orçamento é nós olharmos para o interesse superior do país e vermos qual é esse interesse superior neste momento. E, neste momento, acho que os portugueses não querem novas eleições, não compreenderiam que nós, políticos e na Assembleia da República, não encontrássemos o consenso que permitisse não termos uma terceira eleição em três anos.
Quando estamos a discutir o orçamento temos de ter em atenção o compromisso que, enquanto deputados, fizemos com os eleitores, que votaram para uma legislatura de quatro anos. Foi esse o compromisso, meu, mas também dos líderes partidários eleitos deputados. Quer o Luís Montenegro, quer o Pedro Nuno Santos, quer o André Ventura têm esse compromisso de mandato com o eleitorado que os elegeu para estar quatro anos. Devemos, todos, fazer um esforço e não transformar este debate numa moção de censura.
Mencionou os líderes dos dois maiores partidos da oposição. Qual vai ceder? Porque para ser viabilizado algum deles vai ter de ceder.
O Governo está em negociações, parece-me correcta a metodologia seguida. Talvez menos correcto seja o facto de se deixar cair na praça pública o que são as intenções no que diz respeito à negociação. Uma negociação deve ser discreta, recatada. Isto não tem nada a ver com opacidade; tem a ver com querermos atingir um resultado que muitas vezes não é possível se temos a discussão na praça pública, porque por aí temos que satisfazer outros eleitorados...
É o PS que está a gerir mal a negociação?
Eu não vou fazer juízos de valor. Acho que a metodologia iniciada foi correcta, depois não estou a dizer quem está a fazer bem ou mal, porque quando as coisas são discutidas na praça pública há sempre resposta e contra-resposta e creio que se distribui um pouco o mal pela aldeia, como se costuma dizer em linguagem popular. Acho que era saudável que se chegasse a um consenso, para haver consenso tem de haver cedências, várias, senão não é consenso.
Dos vários lados.
Sim. Se eu quero impor a minha vontade absoluta é evidente que não trabalho para um consenso, mas acredito que esse esforço está a ser feito. Não devemos ter uma atitude de censura, devemos ter uma atitude de confiança em relação a quem nos elegeu e quem nos elegeu deseja seguramente que não tenhamos eleições antecipadas. Acredito no bom senso de todos e que, no final, vamos ter um orçamento aprovado.
Falou nesse trabalho discreto. Como presidente da AR ainda não teve intervenção neste processo?
Não tive nenhuma intervenção a não ser a expressão da minha opinião sobre o que devia acontecer. Dentro dessa, digamos, magistratura de influência pelo discurso transmito o que me parece ser o sentir dos portugueses, do que ouço nos meus contactos com as pessoas, a sociedade, nas diversas audiências.
O Governo faz bem ao recusar governar em duodécimos?
É legítimo que o faça. Muitas vezes criam-se tabus. É saudável que fique clarificado antes quais são as consequências de não chegarmos a um consenso. Assim temos todos um quadro mais claro e, depois, cada um tem as suas responsabilidades.
O Presidente da República deve ser mais claro, como fez com António Costa em 2021, em que bem cedo disse que sem orçamento havia eleições?
Temos que respeitar os momentos que o Sr. Presidente da República entende para o fazer… No momento que considerar relevante para que não haja dúvidas quanto às consequências, acredito que o dirá. Portanto, esse juízo de oportunidade só lhe compete a ele e eu não desejaria interferir nisso.
O Presidente não criou uma jurisprudência política ao dissolver o Parlamento em 2021, depois do chumbo do OE2022?
Eu sou jurista de formação e advogado e tenho talvez o vício de achar que é sempre muito difícil comparar situações que não são comparáveis. No direito é assim, a gente julga que às vezes a situação é exactamente igual e depois não, tem variáveis que são diferentes. As variáveis de hoje são diferentes das do passado: a composição e fragmentação da AR, a correlação de forças. As experiências adquiridas também ajudam na formação de uma decisão. É cautelar nunca considerarmos que a situação que estamos a viver é exactamente igual a uma do passado.
Com eleições agora, não haveria maioria absoluta do PSD (como o PS teve em 2022), por causa dessa fragmentação?
Agora, depois do jogo acabado, é fácil, mas se formos ao juízo de então não creio que tivesse havido certeza de uma maioria absoluta. Houve surpresa, até para o próprio. Há uma diferença entre aquilo que são as expectativas, e depois aquilo que o povo na hora vota; na altura, foi inesperada uma maioria absoluta e agora se calhar devemos ter, como costuma dizer o povo, 'cuidados e caldos de galinha'. Vamos pautar a nossa decisão em função do interesse nacional, e menos daquilo que podem ser os ganhos políticos ou partidários que, se calhar depois, o povo português sanciona de forma diferente.
Com a realidade actual, pode ser um presidente a prazo mais curto. Agora que se sabe que Francisco Assis já não será o candidato do PS à segunda parte desse mandato, ainda acha que este foi um bom acordo com o PS?
A prazo estamos sempre... O prazo é que pode ser diferente [risos]. Na altura, perante uma situação complicada de impasse, foi possível chegar a um consenso. Se foi possível num momento delicado, por que não chegar a consenso no orçamento? Porque não chegar a consenso que o povo português espera que tenhamos?
Esta foi uma solução positiva e digna para se chegar a desbloquear o impasse. O dr. Francisco Assis já não é deputado. Eu não deixarei de cumprir a parte de compromisso que fiz. Na altura certa, colocarei à disposição esta função e logo se verá o que acontece.
Este mês o Parlamento ouviu finalmente as explicações da Procuradora-geral da República, algo que pedira. A sua presença física nesta audição, algo raro por parte de um presidente da AR, não pode ter sido lida como uma intimidação a Lucília Gago?
Não, absolutamente. Primeiro, a senhora procuradora não se sentiu intimidada, porque não tinha razão para [sentir-se]. Pode ver a coisa ao contrário: foi até para qualificar, de uma forma ainda mais relevante do que aquilo que eu fui dizendo, e demonstrar que, tal como eu tinha dito, era bom ir ao Parlamento, fazia todo sentido ir ao Parlamento, prestar declarações no Parlamento. É uma coisa positiva e saudável para a democracia. Demonstrou-se que é possível, a senhora procuradora fez os depoimentos sem violar o segredo de justiça, a que está vinculada.
Não violou o segredo de justiça, mas também não deu muitas respostas. Ficou esclarecido como que ouviu?
O conteúdo do que se diz, aquilo que a senhora procuradora ou os deputados entendem perguntar, fica da análise política que se queira fazer, da interpretação dos silêncios, das omissões… Há matérias em que fiquei esclarecido e outras em que não.
O Manifesto dos 50 fez um “caderno de encargos” para o perfil do próximo procurador-geral da República.
No que diz respeito ao perfil, desde que fui ministro da Justiça há 20 anos, tenho referido que é muitíssimo importante numa sociedade mediática que os agentes da Justiça, nomeadamente o procurador-geral da República, tenham competências de comunicação. Porque muitas vezes se fazem interpretações que não são justas nem correctas quando se põem em silêncio. Para além da competência técnica, de ser um agente importante para contribuir para uma boa investigação, [importa] que tenha capacidade de comunicar, para que contribua para uma justiça mais credível.
Tantos apelos e manifestos não são uma ingerência ou pressão excessiva da política sobre a justiça?
Pressões indevidas seriam se outros órgãos de soberania estivessem a fazer uma intervenção para lá do razoável das suas competências e, com isso, uma interferência inaceitável. O resto é normal numa sociedade que se deseja proactiva, participativa e que cuide da democracia. E depois o poder político há-de saber calibrar esse tipo de intervenção.
Na tomada de posse da Comissão de Inquérito (CPI) à Santa Casa da Misericórdia disse que as pessoas não devem ter medo de ir à AR. Porquê?
É minha percepção e não é de hoje. Muitas vezes se julga que vir à Assembleia é uma situação mais problemática de inquirição. A pessoa vem à Casa da Democracia, vem ao sítio da expressão maior da liberdade.
As pessoas sentem que é como se viessem a um tribunal?
Às vezes. As CPI têm a obrigação e o grande dever de fiscalização, averiguação e escrutínio que compete à Assembleia. Devem fazê-lo com rigor para se descobrir a verdade, mas não são um tribunal.
Mas não haverá partidos que aumentam essa percepção pela forma como abordam as pessoas chamadas ao Parlamento?
A minha apreciação é genérica. Não há nenhuma força política que, ora aqui, ora ali, não cometa algum excesso.
A CPI das gémeas tem ajudado a esclarecer a opinião pública?
As CPI devem contribuir para isso. Nem sempre é fácil. Louvo o esforço dos deputados em tentar que isso aconteça e há matérias em que a CPI tem efectivamente contribuído para esse esclarecimento da verdade. Como também achei que havia pedidos que extravasavam [poderes], tive o cuidado de pedir um parecer ao Conselho Consultivo da PGR, que confirmou o meu pensamento [de recusa de acesso a comunicações entre Marcelo e o filho].
Tem tido quase uma guerrilha com o Chega nestas questões da CPI das gémeas…
Não, não tenho. Aliás, contrariamente ao que era expectável na opinião pública, de que este mandato ia ser impossível, que a democracia parlamentar ia ser difícil de assegurar, que as tensões... Eu acho que em seis meses que o exemplo é exactamente ao contrário.
Não é o alvo marcado pelo Chega como o partido fez a Augusto Santos Silva?
Não sei. Na minha tomada de posse referi que o meu tratamento era equidistante, leal, com os 230 deputados, todos têm a legitimidade eleitoral e é isso que eu devo respeitar. Assim como também exijo a lealdade de todos a essa forma que eu tenho de agir. Quando eu fiz a avaliação em relação a essa matéria [acesso a dados de comunicações], podia ser o Chega, podia ser o PSD, podia ser o PS, podia ser o Bloco de Esquerda, a mesma matéria seria tratada da mesma forma.
Há muito barulho e gritos no plenário. Sente que há momentos em que perde o pulso sobre o bom funcionamento dos trabalhos?
Não.
Esta semana ameaçou que suspendia os trabalhos. Tem sentido respeito do plenário para consigo?
Sim, em geral sim. A análise que faço entre o dia 1 [do mandato] e hoje é de uma evolução muito positiva.
Acha que o comportamento melhorou?
Acho. E há uma diferença enorme entre o momento antes e o depois do meu parecer sobre ‘no meu entender, pode’ [deputados não podem insultar-se entre si, mas podem insultar pessoas externas ao Parlamento – e isso é a liberdade de expressão, defendeu num parecer]. Deve haver espaço para todos dizerem aquilo que bem entendem no âmbito do mandato que lhes foi conferido pelo povo português. Há momentos um bocadinho mais tensos; é normal da prática parlamentar se for ver as actas do plenário.
Instituir o mecanismo do microfone que se desliga não foi colocar na electrónica a responsabilidade que lhe cabe de gerir os trabalhos e os tempos?
Não. A função maior do presidente no plenário não é ser censor, mas sim garantir que o debate se faça com toda a dimensão democrática. Ou seja, tenho que garantir que o debate não seja condicionado e não condicionar o debate. Esta ferramenta que passou a existir reforça a igualdade de armas entre deputados.
Os plenários mais exaltados não desprestigiam o Parlamento?
Os debates mais exaltados, por si, não desprestigiam. O conteúdo do que se diz, a linguagem desadequada, acho que sim. Há vocabulário que não se deve usar, várias vezes faço referência a isso.
Já cumpriu, em princípio, um quarto do seu mandato. Qual foi a maior dificuldade destes meses?
Há quatro momentos de natureza pessoal que me são marcantes: o da eleição, sui generis, com aqueles contornos, que me fez reflectir, naquele momento, sobre o que é a democracia, o exercício da participação; o dia 25 de Abril, pelo tipo de discurso que fiz, e a minha ida à avenida para o desfile; e o da minha visão sobre a liberdade de expressão [o parecer motivado pela discussão sobre comentários do Chega]. Este foi um momento difícil, solitário, e exposto mediaticamente. Não esqueço que durante um fim-de-semana inteiro, todos os canais televisivos falavam sobre o tema - a pessoa tem de ter uma cultura democrática e uma resiliência muito fortes, e estar muito convicto do que pensa para as coisas do país, para não ir abaixo.
Começa a falar-se de presidenciais. Já pensou em entrar nessa corrida?
Não, não. Estou focado na minha função de presidente da Assembleia da República. Quando a pessoa está numa função e pensa noutras coisas faz mal as duas: faz mal a que está a fazer e prepara-se mal para aquela que deseja fazer.
Penso estar a contribuir para que a democracia, na dimensão parlamentar, esteja a funcionar, apesar de haver oscilações, momentos mais tensos e menos tensos. Tem havido votações em que o Chega vota diplomas do Partido Socialista, o PS está numa série de situações [de acordo] com o PSD, o PSD a estar com... Ou seja, a democracia parlamentar está a acontecer, têm sido possíveis essas votações. E digo com uma intenção: espero que essas situações que têm acontecido tantas vezes também se possam encontrar agora no Orçamento de Estado, para poder haver essas geometrias variáveis.
Com estas últimas sondagens, que duelo imagina entre Centeno, Marques Mendes e Gouveia e Melo?
Primeiro, a discussão em torno das presidenciais ainda é prematura em relação a outros temas que temos pela frente. Segundo, diz-me a minha experiência de vida e política que o que estamos a falar hoje pode não ter nada a ver com aquilo de que vamos falar daqui seis, sete meses. Só mais próximo poderemos fazer, digamos, um juízo prognóstico em relação a essa matéria.