“Para alguma extrema-esquerda, os sem-abrigo tornaram-se quase um negócio”
A presidir à Câmara de Lisboa há três anos, Carlos Moedas recusa falar em recandidatura. Acusa PS de “bloqueios” na cidade e no país. E culpa reforma “incompleta” de António Costa por lixo nas ruas.
Liderando uma coligação que, em 2021, trouxe a direita de volta aos comandos da maior autarquia do país, Carlos Moedas acusa, em entrevista ao programa Hora da Verdade do PÚBLICO e Rádio Renascença, o PS de se comportar como se fosse “dono disto tudo” e de “não assumir que perdeu as eleições”. Uma atitude que, acusa, está a provocar “bloqueios”, tanto a nível local, como nacional. Dizendo-se preocupado com a ascensão dos extremos políticos, apela aos socialistas para assumirem a sua posição no campo dos “moderados”. Tanto na viabilização do Orçamento do Estado, como no orçamento da câmara. Moedas recusa, porém, assumir qualquer responsabilidade pelos problemas sentidos hoje na capital. A proliferação do lixo e o descuido no espaço público são citados como resultado da herança que recebeu de António Costa e Fernando Medina como seus antecessores. Para o executivo por este liderado fica o ónus do polémico negócio dos placards publicitários de grande formato.
O congresso do PSD foi adiado por causa dos incêndios. Vai assumir mais responsabilidades no partido, daqui em diante?
Sou presidente da câmara a tempo inteiro e a minha missão é ser presidente da câmara. Posso sempre estar disponível para ajudar no partido, como ser o número um do conselho nacional, mas estou muito focalizado no que é a acção executiva de ser presidente da câmara. Não tenho muito tempo disponível para estar na política activa, exactamente por isso. Mas Luís Montenegro sabe que conta comigo. Aliás, aceitei ser conselheiro de Estado e com muita honra fui eleito para isso. Mas não posso ter cargos que envolvam mais ou muito tempo da minha parte, uma vez que ser presidente da câmara é 24 horas por dia.
Significa que está disponível para continuar?
Penso que é mau para a política as pessoas estarem sempre a pensar ou a posicionarem-se no futuro e serem candidatos.
Mas é o futuro próximo…
Não, temos um ano. Se estivesse aqui para me apresentar, que não estou, como candidato a alguma eleição, a partir daí, já não poderia estar, todos os dias, a ser presidente da câmara. Acho que os lisboetas não me perdoariam isso. Precisam de saber com o que contam.
Não se quer comprometer porquê? Está cansado? Acha que é o fim de um ciclo político?
Não... Penso que, de tudo aquilo que fiz na vida, é o trabalho mais intenso, mas é aquele também que me dá mais energia, que é resolver os problemas das pessoas. Não anunciarei antes de tempo posicionamentos ou o ser candidato a alguma coisa. Nunca o farei na vida e, portanto, não contam comigo para isso.
Mas, apesar disso, já falando em autárquicas, tem-se perfilado uma frente de esquerda, com o PS e o Livre a manifestar já abertura para isso. Acha que o PSD também devia ir a votos com uma frente de direita com a Iniciativa Liberal, por exemplo?
Na verdade, essa “frente de esquerda” já não existe, uma vez que o Partido Comunista Português, ou a CDU, lançou o seu candidato. Pode haver uma coligação de partidos de esquerda, mas isso já existia antes. O Partido Socialista foi a eleições com o Livre e os Cidadãos por Lisboa. Acredito que poderá haver aqui uma coligação, como eu também tive uma coligação.
Mas a Iniciativa Liberal é um parceiro natural?
A Iniciativa Liberal é um partido que respeito, é um parceiro natural da minha área política, na área da economia. Talvez seja menos um parceiro na área daquilo que são as políticas sociais.
E pelo Chega?
Nunca tive qualquer reunião ou qualquer contacto com o Chega.
E para a frente também não vai haver?
Tenho muito medo da extrema-direita e da extrema-esquerda. A extrema-direita e a extrema-esquerda estão aqui para destruir o sistema. A união com as extremas-esquerdas e as extremas-direitas são más para a democracia e eu posiciono-me como político da moderação contra os extremos.
Anunciou que a Polícia Municipal vai passar a poder fazer detenções. Isto não é, em si, uma cedência ao Chega?
Não. Já há muitos meses que falo naquilo que assumi como uma mudança na Polícia Municipal. Os polícias da Polícia Municipal são polícias de segurança pública. Há uma coisa que, como lisboeta, nunca percebi. Porque é que, se está a haver uma cena em que há um roubo, uma pessoa a roubar uma carteira, o polícia municipal não actua? O que é que os lisboetas vão pensar? Vão pensar: então, mas o que é a Polícia Municipal? Ao comandante da Polícia Municipal eu disse: “Senhor comandante, os seus polícias são polícias da segurança pública, eles têm de fazer detenções.” O que peço à ministra, e já o transmiti, é que haja uma pequena mudança na lei, para que a Polícia Municipal possa não só fazer essa detenção, mas depois levar até à esquadra. Isto não tem nada que ver com extrema-direita ou extrema-esquerda. Isto tem que ver com segurança da cidade, com as preocupações das pessoas.
Lixo visto como herança de Costa
Porque é que Lisboa está tão suja?
Vivi em várias cidades na Europa. Pedia-vos para perguntarem a pessoas que vêm de Bruxelas. É uma cidade mais suja do que Lisboa. Londres e Paris são capitais muito mais sujas e com menos...
Isso não são desculpas?
Temos de olhar para o problema, olhar para a Europa e dizer que Lisboa, comparado com essas capitais, não fica atrás. Contratei, na altura, 200 pessoas e estou a contratar mais 200 pessoas. Nestes primeiros meses de Janeiro até Agosto, recolhemos mais 8 mil toneladas de lixo do que o ano passado. Estamos a recolher mais, a tratar mais e a fazer mais tudo o que é selectivo, tudo o que é reciclagem. Antigamente, em 2016, 2017, 2018, 2019, fazia-se muito menos. Estamos a fazer isso todos os dias. Agora, quando há uma campanha política concertada de tirar fotografias na rua, obviamente que essas situações acontecem. E aconteceu em 2008, em 2010, em 2011, em 2013. Há afirmações até do antigo presidente da câmara António Costa sobre aquilo que era o problema-base. Só que ele não resolveu, na altura, e ninguém o resolveu. Foi uma descentralização mal feita. Temos esta dicotomia com as freguesias. Obviamente que o sistema não funciona.
A culpa é das freguesias?
A culpa é de não haver uma responsabilidade apenas de uma instituição. Quando temos um ecoponto, e que é a câmara que recolhe dentro do ecoponto, mas não recolhe os sacos à volta, temos um problema.
Foi a reforma feita por António Costa?
Essa reforma foi uma descentralização, feita, na altura, por António Costa, e penso que a descentralização ficou a meio. Só são as freguesias que fazem ou é a câmara municipal. Este modelo é muito complicado. O segundo problema que tenho – e tenho de começar a falar com os sindicatos, e a nível técnico essas conversas estão a ser feitas – é sobre a não recolha do lixo ao domingo. Ao domingo, produzimos 900 toneladas de lixo e não conseguimos recolher, porque isso não está no acordo com os sindicatos. Não quero fazer nada contra os sindicatos, mas temos de falar. Há problemas estruturais, como as freguesias e a câmara municipal a fazerem um trabalho que, muitas vezes, se repete.
Há uma sensação geral de que a câmara não está a fazer o seu trabalho, de que a cidade está imunda, em muitos casos.
Os casos particulares têm sempre sido corrigidos. Temos estado a contratar muito mais pessoas para os serviços. Estamos a recolher mais lixo. Estou aqui a falar de números. Obviamente, há uma percepção, mas também temos de ter isso claro: há aqui um jogo político de estar num ataque permanente a cada pessoa. Também tem de haver mais sensibilização das pessoas, que não podemos pôr o lixo na rua, quando não são as horas de pôr o lixo na rua; que os ecopontos, muitas vezes, estão vazios e que as pessoas põem os sacos ao lado do ecoponto.
Em relação ao espaço público, há uma ideia de que existe um grande descuido. Passeios esburacados, espaços verdes maltratados, mobiliário urbano descuidado…
Isso resulta de 14 anos de descuido. Vamos falar em buracos na rua. No outro dia, vi estes números. Em 2019, 2021, a câmara de então investiu oito milhões de euros nesses três anos. Nós já investimos 23 milhões a tapar buracos. Tudo isso estamos a refazer. Quando, de repente, neste mandato, já investimos 23 milhões e tivemos os problemas que tivemos, é porque não houve planeamento anterior. É porque as coisas não se fizeram. Não apareceram hoje. Para haver um buraco numa rua, é preciso anos de não ter feito nada. Quando nós tivemos o problema na Rua da Prata, quantos anos é que tiveram sem ir fazer nada à Rua da Prata? Tivemos de fechar a Rua da Prata. Tanto se falava, muitas vezes, da esquerda como dona da sustentabilidade, que não é, mas quem fechou a Rua da Prata ao trânsito fui eu.
Em relação aos placards publicitários, vai mandar remover alguns dos que já estão instalados? Que negociação é que está a pensar fazer com a JC Decaux? O PS diz que foram todos colocados em lugares autorizados pelo presidente.
Aqui, o Bloco de Esquerda e o Partido Socialista mentiram. E é importante que isso fique claro, porque fui acusado de mentir.
Em que ponto?
Mentiram, porque este contrato foi adjudicado em 2018. E, obviamente, como presidente da câmara, tenho de cumprir a lei. E cumprir a lei era assiná-lo. Nem sequer havia aqui uma escolha. Há uma adjudicação do contrato em 2018, com os votos a favor do PCP, do Bloco de Esquerda, dos Cidadãos por Lisboa, e, na altura, com votos contra do PSD. Há uma adjudicação que é feita. Como presidente, tenho de assinar essa adjudicação, depois de todo um imbróglio legal que houve e uma série de litígios. Aquilo que já fizemos foi retirar muitos destes placards, muitos destes “mupis”, como lhes chamamos na cidade. Muitas vezes, pedimos à empresa para retirá-los em situações em que não deveriam [lá] estar. Já mandámos parar todos os grandes formatos. Aquele contrato tinha um anexo que tinha o posicionamento preferencial de 125 destes grandes formatos. Houve aqui quem mentiu, mas não foi o presidente da câmara. Agora, estamos a trabalhar com a empresa, parámos todos os grandes formatos, eles aceitaram, mas tem de ser uma negociação. Se for preciso, até podemos reduzir o montante daquilo que recebemos em relação a este contrato.
O PS tem acusado Carlos Moedas de estar sempre a anunciar a entrega de casas projectadas pelo executivo de Fernando Medina. Quantas casas projectadas pelo seu executivo é que conta entregar, até ao final deste mandato?
Quase que sorri em relação a essa pergunta, porque sou o único presidente da câmara que é confrontado com esta ideia, que é muito deste Partido Socialista. É que, quando os partidos chegam a esse ponto de pensar que são os donos disto tudo, realmente pensam que esses projectos são deles, não são da cidade. Há aqui um ponto interessante em política – é que o PS hoje tem a ideia de que é dono dos projectos, que são projectos da câmara municipal. Na campanha, identifiquei duas mil casas vazias… Essas duas mil casas vazias não estavam a ser tratadas pelo PS. Dessas duas mil, já fizemos mais de mil. Entreguei, até hoje, 2052 casas aos lisboetas. Mil dessas fomos nós. Foi este executivo. Muitos destes projectos que vinham de trás, alguns deles, tinham problemas. Problemas de licenciamento. E nós resolvemos esses problemas e avançámos. Então, se tivesse um projecto de habitação que vinha de trás, eu não o faria só porque ele era do Partido Socialista? O Partido Socialista não é o dono disto tudo.
Como é que se vai conseguir resolver a questão dos sem-abrigo?
Lisboa é a cidade em Portugal que mais faz sobre o grande problema das pessoas em situação de sem-abrigo, que aumentou depois da pandemia. Em Lisboa, temos quase 3400 pessoas em situação de sem-abrigo e, dessas, há 400 que não têm tecto. Lançámos o maior plano em relação às pessoas em situação de sem-abrigo, que são 70 milhões para os próximos sete anos. E multiplicar pelo menos por dois o número de vagas. Permita-me este desabafo em relação àquilo que se está a passar: tínhamos as pessoas em situação de sem-abrigo num quartel em Santa Bárbara. O Governo anterior teimou que eu tinha de retirar das pessoas, que levei para o Beato. Depois, no Beato, o presidente da junta socialista também não estava contente. Temos agora um problema em Arroios que tem de ser resolvido. O Governo propôs o Antigo Hospital Militar de Belém. O presidente da junta da Ajuda, que é do PS, também não quer as pessoas em situação de sem-abrigo ali. Depois, aprovámos um hotel social na freguesia Santa Maria Maior e o respectivo presidente da junta, que é do PS, também não quer ali. Muitas vezes, pergunto-me: será que o PS quer resolver a situação? É que eu quero resolver a situação.
Há uma questão que é muito visível, que é a situação em redor da Igreja dos Anjos. Até quando se vai manter aquele cenário?
Quando a situação começou, imediatamente mandei os serviços da câmara. Havia mais de 100 pessoas, das quais nós resolvemos o caso a 30, que tinham documentos. Os outros, que não tinham papéis, por lei, não os podia ajudar, não estavam documentadas. Agora, há algo em que devemos todos reflectir. Estas pessoas têm de ser ajudadas com dignidade. E nós temos uma extrema-esquerda em que as situações de sem-abrigo diria que são, de certa forma, quase uma maneira de manter as pessoas naquela situação. Ou seja, as pessoas em situação de sem-abrigo tornaram-se, para alguma extrema-esquerda, quase um negócio. E eu acho que isso é um aproveitamento. Aliás, conto uma situação em particular: lembro-me de estarmos a tentar ajudar uma pessoa que vinha do Bangladesh, que falava perfeitamente inglês, e uma dessas pessoas [das associações] dizer que nós não podíamos falar com aquela pessoa, porque tinha de ter um tradutor da língua nativa daquela pessoa, que não era o inglês. Ora, a pessoa falava lindamente inglês. Estávamos a tentar resolver um problema e não nos deixavam resolver o problema. Temos, por um lado, uma extrema-esquerda que, de certa forma, olha para a situação de sem-abrigo quase como um negócio, a manter a situação com tendas que não fazem qualquer sentido. Nós temos é de retirar as pessoas das tendas.
Mas como é que isso é um negócio?
É manter as pessoas naquela situação como arma política. É manter as pessoas naquela situação. Digo isto com o coração muito pesado, porque os serviços da câmara, muitas vezes, estão nestas situações e são empurrados para fora daquilo que é a solução da situação.
É uma acusação grave…
É uma acusação grave, é uma acusação vivida. É uma acusação daqueles que são os serviços e que tenho de defender. E isso é muito importante. Obviamente, que esta acusação não é para todas as associações, nem para todos os partidos. É para alguns partidos de extrema-esquerda que o têm feito e algumas associações que são lideradas e enviadas por esse partido. E, portanto, isso é muito importante que fique claro. E, portanto, essas acusações são acusações de alguém que está no terreno e com um grande objectivo de conseguir resolver a situação. Mas não podemos viver num país em que há um interesse de utilizar estas pessoas como arma política. Isso não pode acontecer. Muitas associações são muito importantes. Falo da Comunidade de Vida e Paz, mas podia falar de outras, são associações absolutamente extraordinárias.