O que se perde quando tudo arde?
São tantos os relatos, tantas as análises sobre prevenção e reação e atuação e tantas as acusações que, a dado momento, o ruído em torno da calamidade banaliza a calamidade.
Há tempos, durante uma palestra, convidei os presentes a partilharem por escrito e de forma anónima o que não deixariam de levar se tivessem de sair de casa a meio da noite por causa de um incêndio. O exercício tinha uma nuance importante: não haveria outras pessoas em casa. A maioria das pessoas respondeu que correria a salvar os animais de estimação. Não fiquei espantado — mas decidi introduzir essa exceção na próxima vez que fizesse o exercício. O segundo maior número de respostas foi para os álbuns de fotografias. E o terceiro dividiu-se entre os documentos e itens de valor, como dinheiro e joias. Uma das pessoas respondeu cuecas. Todas as opções fizeram sentido para mim.
Na semana passada, os incêndios colocaram, uma vez mais, o país em sobressalto e de luto. Morreram sete pessoas. Muita gente perdeu animais e bens materiais, e a floresta sofreu mais um valente desbaste. Nas televisões e jornais, vimos imagens de pessoas a abandonarem as casas debaixo de fumo e chamas, com animais de estimação ao colo, enquanto puxavam trolleys e carregavam malas e caixotes com coisas escolhidas à pressa entre os tantos pertences que quase toda a gente que tem uma casa costuma ter. Olho em redor e vejo um tapete, três armários, uma mesa, seis cadeiras, centenas de livros, 25 molduras com fotografias de familiares, um computador e uma série de outras bugigangas. O que levaria eu daqui? Certamente o computador.
Depois do fogo, as pessoas falaram genericamente do que perderam do monstro que engoliu e cuspiu partes inteiras das suas vidas até fazerem delas tábua rasa: árvores centenárias nas quintas e jardins, casas de primeira habitação, casas de férias, anexos, barracões, armazéns, automóveis, carroças, máquinas e ferramentas agrícolas, vinha, colmeias, animais de criação (ouvi um homem queixar-se de ter perdido mais de 100 animais de uma raça autóctone que adora) e de estimação, livros, dinheiro, joias e… — a lista poderia continuar interminavelmente.
Memorizei o caso de uma senhora de 90 anos:
— O que é que o fogo lhe levou? — perguntou a repórter.
— Não oiço bem — respondeu, numa demonstração de fragilidade que de imediato nos resgata da perspetiva geral do incêndio para a dimensão humana.
— O que é que o fogo lhe levou? — repetiu a profissional.
— Levou-me a casa e tudo o que tinha. Fiquei com a roupa que tinha no corpo. Mas estou em casa dos meus netos e já me deram outra roupa para vestir — explicou, digna, erguida, inteira. Mas nos olhos humedecidos, uma transparência revelava as memórias onde a casa se mantinha de pé.
— E que mais? Também perdeu dinheiro e ouro, não foi?
— Sim, e o cheque da reforma e os medicamentos também.
— E como se sente?
— Estou triste.
A repórter informou-nos que a segurança social vai enviar uma segunda via do cheque. E certamente que alguém lhe comprará os medicamentos.
No meio do ror de incêndios, são tantos os relatos, tantas as análises sobre prevenção e reação e atuação e tantas as acusações que, a dado momento, o ruído em torno da calamidade banaliza a calamidade. O ser humano precisa de tempo para refletir sobre as coisas. Não o tendo, dessensibiliza-se.
O cheque da reforma e os medicamentos engolidos pelo fogo e, sobretudo, aquele “estou triste” reposicionaram-me.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990