Cabo Verde ruma à sua verdadeira natureza em conferência internacional em São Nicolau
Na ilha de São Nicolau, dezenas de especialistas e autoridades encontram-se na 2.ª Conferência Internacional de Turismo da Natureza esta quinta-feira, na cidade de Ribeira Brava.
Para além do sol & mar, do Sal & Boavista, Cabo Verde, altamente dependente do turismo, estuda e projecta apostas no turismo de natureza em conferência no coração do esplendor natural ainda muito desconhecido de São Nicolau (mas: sodade, sodade, dessa nha terra...). Decorre esta quinta-feira, mas é toda uma semana e não só com impacte local e nacional.
Num país onde o turismo vale 25% do PIB, a estratégia é diversificar para reduzir dependências. Na ilha de São Nicolau, uma das mais periféricas do arquipélago, dezenas de especialistas e autoridades encontram-se na 2.ª Conferência Internacional de Turismo da Natureza esta quinta-feira, na cidade de Ribeira Brava.
Com a Ilha do Sal como força maior do turismo, com o sol & mar como atracção maior, e a ilha da Boavista a fazer-lhe companhia de luxo, Cabo Verde, altamente dependente do turismo, quer não só encontrar alternativas como, no próprio turismo, desenvolver outros nichos e outras localizações — o Sal e Boavista, apenas duas das dez ilhas, valem por 85% do negócio.
Ponto de partida: apostar fortemente nas mais-valias das outras ilhas, e desenvolvê-las, promovê-las, seja pela cultura, a gastronomia ou a natureza que vai muito, muito além daquelas praias de sonho, das aldeias, vilas e cidadezinhas hospitaleiras às montanhas bravias, aos monumentos naturais que são obras de arte da natureza, aos vales verdejantes e ao engenho humano. Por isso mesmo, é São Nicolau, uma metáfora real disto tudo e uma das menos visitadas das ilhas, a acolher os especialistas e (quase) todo o Governo. Refira-se que sendo das ilhas mais desconhecidas é, na verdade, a ilha de Cabo Verde mais cantada do mundo: com dois versinhos apenas, Sodade sodade sodade. Des nha terra di San Nicolau, cantados por quem sabe e por quem não sabe crioulo, conquistou o mundo uma diva de pés descalços, Cesária Évora.
É assim sob um calor tropical de suar às estopinhas, na pequena e pacata cidade de Ribeira Brava, capital da ilha aninhada em presépio num vale aparentemente onírico, que especialistas e autoridades máximas do país vão debater propostas, analisar estudos, apresentar trabalho e projectos, afinar a bússola para o turismo da natureza que se quer implementar em ilhas como esta, São Vicente ou Santo Antão — esta a ilha que acolheu a estreia desta conferência no ano passado.
Se “até antes da pandemia” se pensava nisto, com a pandemia ficou definitivamente patente que “era necessário tomar medidas para não concentrar demasiado a economia no turismo, e também não concentrar o turismo em duas ilhas e um nicho em particular”, diz à Fugas Francisco Sanches Martins, administrador executivo do Instituto do Turismo de Cabo Verde e organizador da conferência. “Na pandemia, quando tudo parou”; aliás, “não havendo turismo no Sal e Boavista”, sublinha, “o país parou”.
Resiliência, diversificação, sustentabilidade, são mantras que também por aqui foram adoptados e a conferência quer fazer o resumo do que já foi feito e do que se quer fazer, enquanto se analisam boas práticas internacionais e medidas adoptadas em territórios similares, incluindo portugueses, nomeadamente Açores. E se apresentam estudos e projectos entretanto realizados para cada uma das ilhas, particularmente as mais periféricas e afastadas de um maior turismo.
Mais que sol e praia
“Mantendo o sol e praia, produto principal, uma das recomendações principais dos planos é diversificar os segmentos para o grande activo que temos nas ilhas mais montanhosas”, sublinha. E nelas já existem e têm sido trabalhados, na prática, muitas atracções, dos percursos pedestres (antigos e recuperados ou novos), aos desportos radicais e actividades náuticas.
À boleia da natureza, a conferência passará por temas como “a aposta na gastronomia, na hospitalidade, no convívio com as pessoas, na autenticidade real, na cultura”, sublinha, apontando que um dos grandes expoentes da cultura cabo-verdiana, Baltasar Lopes da Silva, autor de um clássico nacional, “Chiquinho” (1947, onde outro grande tema nacional, o da emigração, é transversal) nasceu aqui precisamente em São Nicolau. A casa do escritor está ali, no centro de Ribeira Brava, à espera de sair da ruína, perto do edifício que foi o primeiro liceu do país, onde “muitos dos intelectuais” estudaram.
Por estas ruas e ruelas apertadinhas por onde sobem e descem no vale e montanhas casarios coloridos irão assim passar especialistas do país e convidados internacionais para apontarem o rumo do turismo da natureza. Uma roda-viva muito pouco habitual e alguma vez vista na Ribeira Brava de São Nicolau: do primeiro-ministro, Ulisses Correia e Silva, a Carlos Santos, ministro do Turismo e Transportes; Carlos Monteiro, ministro adjunto para Desporto e Juventude; passando por outros representantes de ministérios nacionais, CEO e dirigentes de empresas (da Totum, que organiza o trail, ou da Cabo Verde Airlines que vem apresentar novidades; Elcia Grandcourt, directora regional da Organização Mundial de Turismo para África e Francisco Bettencourt, o director regional de Mobilidade dos Açores — os Açores estão muito presentes, até porque o case study da conferência é o Geoparque dos Açores, aqui representado por Paula Sousa.
Portugal tem naturalmente uma forte presença, incluindo-se aqui também João Portugal, especialista em Turismo de Natureza no Turismo de Portugal, ou o professor Jorge Revez, da Universidade do Algarve e presidente da Associação Para o Estudo e Defesa do Património Natural e Cultural de Mértola e gestor do Projecto Eco Raízes: Destaque ainda para a participação de Carol Castiel, fundadora e presidente da organização dedicada à história judaica no país (Cape Verde Jewish Heritage Project) e do escritor José Joaquim Cabral (autor de livros como o premiado “Destino Aziago”). Haverá ainda direito a mensagem especial enviada por Zurab Pololikashvili, secretário geral da ONU para o Turismo
A listagem de individualidades não é displicente: serve particularmente para se compreender a importância do momento e do encontro, nesta cidade tamanho cujo concelho tem oficialmente cerca de 7500 habitantes (a ilha no seu todo não chega ao dobro deste número) que quer ir muito para além da “decoração”. “Queremos que uma conferência destas tenha resultados palpáveis, mesuráveis”, sublinha Sanches Martins, garantindo que no início deste congresso será apresentado todo o trabalho feito “em todo o país, todas as ilhas” sobre o segmento do turismo da natureza no último ano.
Diversificação e sustentabilidade são “motes” para todos os programas do momento, com lembrança da “fragilidade do ecossistema”. Motes que não serão esquecidos durante estes debates e apresentações e a que se juntam temas como a “regulação do alojamento local, como trazer turistas para fora do sol&praia, do hotel e resort, como nos vamos adaptar ao novo turismo que vem aí, que boas práticas internacionais podemos adaptar de uma forma inteligente, evitando aquelas práticas negativas com consequências nefastas e reacções negativas da população que tantos países já sentem”, resume Sanches Martins — vide até Portugal, particularmente Porto, Lisboa ou Sintra.
O modelo Sal, comparando ao motor algarvio, muito baseado na hotelaria, resorts, pacotes tudo incluído, pode ser uma “porta de entrada” para outro turismo, e outras ilhas, incluindo, “crescentemente”, o autónomo, o turistas que vem fora de agência e parte à aventura e descoberta das riquezas naturais do arquipélago tantas vezes chamado de “país das maravilhas”. Até porque, alerta low-cost, a easyJet vai estrear-se no arquipélago, com voos Lisboa/Porto — Ilha do Sal a partir de finais de Outubro. E uma coisa é certa, assegura o responsável, o Sal e a Boavista continuarão no seu rumo próprio, e a crescer: “Há projectos propostos para ali que nem imagina”.
É assim com naturalidade que Cabo Verde concluiu que, assegurada a força desse turismo e dessas entradas financeiras, o tempo é de defender a natureza, e aproveitá-la turisticamente, incluindo “para benefício do povo”.
Para ajudar a orçamentar os planos e os projectos de turismo da natureza o Governo conta também com fundos directos dos próprios turistas: a taxa de alojamento é de 2,5 euros por turista (ou residente) por noite. E, realça Sanches Martins, “50 cêntimos vão para o Fundo Mais, dirigido a apoiar iniciativas para cidadãos carenciados”, destaca. No todo, “50% é aplicado em todos os municípios, não interessando se tem mais ou menos turismo, em melhorias que vão da acessibilidade à segurança, saúde e infra-estruturas”, assegura.
Um dia para projectar o futuro natural
Na conferência, os Açores ganham especial realce como território de estudo. Precisamente o case study é Geoparque Açores, que está representado para mostrar a sua experiência e debater estratégias. “Aqui, em São Nicolau, temos o Parque do Monte Gordo que ansiamos siga esse exemplo”, diz. “E esta é uma ilha muito desportiva, já vêm pessoas de todo o mundo para fazer caminhadas — há mesmo um encontro internacional de caminhadas aqui, já com seis edições — ou mesmo um radical trail, como o que decorre também esta quinta-feira”. Enquanto uns conversam, muitos correm.
Algumas questões irão percorrer necessariamente todos os painéis: Como é que o turismo impacta nos locais? Qual o seu impacto em ilhas ainda preservadas das rotas como São Nicolau? Como avançar sem estragar? As respostas não são fáceis mas, assegura o director do Instituto de Turismo de Cabo Verde, dependente do Ministério do Turismo, todas têm de passar por um “turismo de proximidade com as pessoas”, “um turismo que reparta o dinheiro por mais gente, pela economia local, pelas pequenas mercearias e lojas, pelos restaurantes e pequenos alojamentos, pelos mercados, pelos empreendedores, pelos operadores, agências e empresários locais”. “São muitos desafios”, lança.
Uma coisa é certa: Cabo Verde ruma a novos projectos com base no turismo da natureza, mas não deixa para trás o turismo das duas ilhas-âncora. “Continuamos a acarinhar o sol & mar do Sal e Boavista, não vamos fazer disso um bicho-de-sete-cabeças como tanta gente faz”.
Há maravilhas nestas ilhas
Para ilhas como São Nicolau, a filosofia, defende, é fazer “com que as ilhas com características mais tradicionais como esta onde estamos mantenham a sua autenticidade cultural e natural. É um produto diferente”, resume Sanches Martins, rematando: “esta conferência vem trazer essa mensagem, de manter a autenticidade e ser possível defender a sustentabilidade para as próximas gerações”. Porque se noutros países já há vislumbres do turista como agressor, aqui está-se muito longe dessa ideia e não quer-se afastá-la o mais depressa e melhor possível: “Exactamente, já temos essa preocupação e o caso de São Nicolau vai ser dessa forma. Já São Vicente, por exemplo, tem um produto muito específico, cultural, também de cruzeiros”, refere, confirmando que vai ser inaugurado um terminal de cruzeiros na ilha “ainda este ano”. E muitos desses cruzeiristas, claro, acabarão por fazer passeios à descoberta da vizinha São Nicolau.
Nesta ilha, que, enquanto por aqui passeamos, parece viver na paz dos anjos (embora, vox populi, sentindo-se algo abandonada, particularmente com críticas às ligações aéreas), o importante, refere Sanches Martins, é “preservar os activos naturais da ilha, apostar nos produtos locais, no tecido empresarial”, “dar ênfase ao turismo, como este pode ter impacte positivo, na qualidade de vida, na agricultura, na produção”.
Quanto a projectos, além de melhorias de acessibilidade e infra-estruturas, como o aeroporto ou a área da vila de Preguiça, ou novos espaços culturais e pequenas lojas (“talvez um cyber café com livraria”, onde se possa comprar o clássico Chiquinho ou outros livros, já que não há livros à vista por aqui a não ser na pequena e bonita biblioteca), os projectos que são apreciados têm sido “de pequena dimensão, não é ilha para projectos de grande dimensão, não é isso que se quer”.
A ilha, destaca, foi aliás “a primeira” a ter traçados percursos pedestres, sinalizados e identificados, com pontos GPS e internet, para o “visitante se sentir em segurança”.
Por isso mesmo, o programa preconferência, esta quarta-feira, inclui a inauguração do Centro de valorização de Produtos Locais de São Nicolau. Um pequeno passo para um futuro que se quer natural.
A Fugas está em viagem a convite do Instituto do Turismo de Cabo Verde