À Beira do Abismo: 100 anos de Lauren Bacall

Era uma mulher cáustica e inteligente, de fortes convicções, que fez Bogart assobiar e cuja morte lhe assobiou há 10 anos. Pela morte e pelo centenário, recordemo-la com saudade.

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Megafone P3: 100 anos de Lauren Bacall Reuters
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Há datas que não podem passar em branco. E hoje é uma delas pois comemora-se o centenário de um ícone inquestionável da sétima arte, a elegantíssima e refinada Lauren Bacall. Há que reconhecer que parte da fama de Bacall, uma sucedânea melhorada de Veronica Lake, deve-se ao facto de ela ter sido casada com a maior lenda do cinema americano, Humphrey Bogart. Os filmes mais importantes da sua carreira, Ter ou Não Ter (1944) e À Beira do Abismo (1946) foram protagonizados ao lado de Bogart. Porém, Bacall é também uma estrela por direito próprio: tinha muito carisma (“Tem uma presença fortíssima”, disse-me um professor), bastante talento (interpretava com convicção mulheres fatais, cínicas e da alta sociedade) e, embora nunca a tenha considerado a beleza que muitos dizem ser, reconheço que era suficientemente atraente para gerar contemplação no espectador.

A descoberta de Bacall é lendária. Howard Hawks andava à procura de uma atriz para o seu novo filme, Ter ou Não Ter. A sua esposa deparou-se com a figura de Bacall numa capa da revista Harper's Bazaar e ficou rendida à beleza da jovem de 18 anos, sugerindo ao seu marido que a chamasse para fazer um screen test. Hawks concordou e Bacall iniciou, assim, a sua carreira em grande, logo com um papel protagonista junto a Bogart que estava no auge da fama depois de sucessos como O Falcão Maltês (1941) e Casablanca (1942).

Durante os screen tests, Bacall estava muito nervosa e, para fazer com que o seu tremor não se notasse, contraía o seu queixo contra o peito, olhando com os seus olhos para cima. Esta pose era atraente e ficou conhecida como “The Look”. Aliado a isto estava a sua voz rouca e sensual que é muito apropriada para o noir, o género mais associado à atriz.

Como se sabe, Bacall e Bogart apaixonar-se-iam nas gravações, casariam e encabeçariam juntos mais três filmes. Sinceramente, não aprecio demasiado Ter ou Não Ter, que me parece uma tentativa mais ou menos satisfatória de repetir Casablanca. À Beira do Abismo é o melhor filme de Bacall mas é extremamente difícil de seguir. O Prisioneiro do Passado (1947) é considerado um veículo inferior da dupla. E Paixões em Fúria (1948) é o melhor depois de À Beira do Abismo. Depois da sua fase com Bogart, a carreira de Bacall foi mais irregular em termos de qualidade. A sensação que tenho é que, em vários dos seus filmes, ela é ofuscada por outra atriz coadjuvante. Em Ter ou Não Ter, brilha com toda a força, não dando grande hipótese à voluptuosa Dolores Moran, mas em À Beira do Abismo, Martha Vickers, que nunca foi uma estrela, rouba-lhe o filme. Também em Paixões em Fúria, é mais uma vez diminuída perante a grande atuação de Claire Trevor.

Na década de 1950, Bacall faria outros filmes interessantes, mas continuaria a ser obscurecida por outras actrizes. Atentemos, ainda que seja a protagonista na comédia convencional Como Se Conquista Um Milionário (1953), filme com Betty Grable e Marilyn Monroe, Bacall não é a que está em melhor forma. Curiosamente, a que mais se destaca é a hoje subestimada Betty Grable que era, na altura, a maior estrela das três. Também no delicioso O Mundo é das Mulheres (1954), a ruiva Arlene Dahl tem o papel mais suculento. E no melodrama Escrito no Vento (1956), uma das maiores obras do conceituado Douglas Sirk, o papel de Bacall é completamente pálido diante da vibrante atuação da secundária Dorothy Malone, que ganhou merecidamente um Óscar.

Se há um filme em que a Bacall brilha com plenitude é a sofisticada comédia A Mulher Modelo (1957). Nunca esteve tão bem. A química entre Bacall e Gregory Peck é evidente e o facto de os dois partilharem visões políticas de esquerda poderá ter ajudado a criar uma maior cumplicidade entre os dois. Isto porque é sabido que Bacall e o seu marido Bogart tiveram um papel ativo no mundo da política, tendo-se manifestado corajosamente, juntamente com alguns artistas de Hollywood, contra o Macarthismo.

Depois de Bogart morrer de cancro, em 1957, a carreira de Bacall foi menos marcante, mas ainda assim ganharia, em 1996, um Globo de Ouro pela sua participação no filme As Duas Faces do Espelho. Importante referir que teve grande êxito na Broadway sobretudo pela peça Applause (pela qual ganhou um Tony).

Era uma mulher cáustica e inteligente, de fortes convicções, que fez Bogart assobiar e cuja morte lhe assobiou há 10 anos. Pela morte e pelo centenário, recordemo-la com saudade.

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