As últimas semanas foram devastadoras no que toca a casos mediáticos de violência contra mulheres. Em França, Dominique Pélicot drogou a sua mulher, Gisèle, para que fosse violada dezenas de vezes, por si e por mais de 70 homens, ao longo de dez anos. Bombeiros, jornalistas, comerciantes, reformados, e até guardas prisionais, dos 26 aos 74 anos, foram contratados pelo próprio através de um site de sexo não-consentido.
Dickson Ndiema Marangach assassinou a namorada, a atleta Rebecca Cheptegei, que representou o Uganda nos Jogos Olímpicos em Paris, regando-a com gasolina e ateando-lhe fogo, gerando queimaduras em 80% do seu corpo, às quais acabou por não resistir.
Recentemente, foi descoberto em Portugal um grupo de Telegram com cerca de 70 mil homens, onde se partilham, sem consentimento, fotografias íntimas de mulheres, muitas delas ex-parceiras ou namoradas de amigos, assim como informações pessoais sobre as mesmas e comentários execráveis de cariz sexual sobre os seus corpos.
Na mesma linha, em Portugal todos os anos são assassinadas cerca de 30 mulheres às mãos de homens, na sua maioria companheiros.
Na União Europeia, uma em cada cinco mulheres já foi vítima de violência física e/ou sexual por parte de um parceiro ou ex-parceiro íntimo, número que se agrava para uma em cada três, quando ampliamos à escala mundial.
Pesado, não? Imaginem para quem o vive na pele ou, sendo mulher, teme vivê-lo. Porque o risco é real.
Temos um problema grave de violência de género à escala nacional, europeia e mundial. Homens que matam, agridem e violam mulheres, diariamente. Se são todos os homens? Obviamente que não. Mas é inegável que são eles quem comete a esmagadora maioria destes crimes.
“Mas há muito mais homens do que mulheres a morrer vítimas de homicídio.” Verdade. Mas são também homens quem os mata. Com a diferença de que aqueles que morrem às mãos de homens não morrem por serem homens. Talvez por serem homens gays, “trans” ou negros. Mas não apenas por serem homens.
É urgente refletir sobre o que estamos a ensinar e perpetuar sobre masculinidade.
Quando se fala em masculinidade tóxica — um termo largamente repetido nos últimos anos e que faz revirar muitos olhos — é importante esclarecer que não se está a dizer que ser masculino ou ser homem é tóxico, mas que as características que continuam a ser consideradas como as de “homem de verdade” são problemáticas.
E, enquanto sociedade, temos uma responsabilidade sobre isto. Alguns exemplos:
– meninos que crescem a ver a mãe a assumir todas as tarefas domésticas, aprendendo, assim, que as mulheres devem servi-los. E, ao contrário do que oiço muitas vezes, não, isto não é só culpa das mães. Quando o afirmamos, ignoramos que ela está a desempenhar o papel para o qual foi socializada, ao mesmo tempo que reforçamos que a função de educar os filhos é unicamente sua. Que não é! Ambos têm responsabilidade pela educação e exemplos que apresentam aos seus filhos;
– ensinamos aos meninos que “homem não chora” e que as formas de expressão adequadas para si são a raiva, a força e a dominação. O resto “é de menina”, indicando que “ser de menina” é mau e uma ameaça à afirmação da sua masculinidade;
– perante meninos que levantam a saia às meninas na escola — porque já perceberam que isso lhes é permitido e visto como positivo — dizemos, orgulhosamente, que “este vai sair ao pai”, enquanto instruímos as meninas para que não vistam saias e não os meninos para que não as levantem;
– na adolescência, dizemos às raparigas para serem recatadas e se “fazerem difíceis” e aos rapazes para “se irem a elas”, incentivando um comportamento predatório e dominante;
– já adultas/os, muitas vezes, ao saber de uma violação, perguntamos o que a vítima levava vestido;
– quando ficamos a saber destes grupos do Telegram, dizemos: “Elas que não tivessem tirado as fotografias!...”;
– ao ver amigos nestes grupos ou a apitar e mandar piropos de dentro de carros, ou a ser insistentes em tentativas de engate na noite, achamos normalíssimo, rimo-nos e dizemos; “Ai, os homens, todos iguais...”;
E poderia continuar porque, sendo o problema estrutural e sistémico, os exemplos são muitos.
E todas estas pequenas coisas que já dissemos, fizemos ou às quais assistimos em silêncio educam para o domínio masculino sobre as mulheres, para a sua desumanização, para a violência e para a culpabilização das vítimas e impunidade dos agressores.
É urgente educar os meninos para os afetos, para o cuidado, para o respeito, para verem uma menina ou uma mulher, como uma pessoa com iguais direitos, igual valor.
É urgente educar meninas para terem voz, para assumirem o poder sobre o seu corpo, para se reconhecerem valor por si mesmas e não através da validação masculina.
É urgente que homens se desconstruam, que oiçam mulheres, que se posicionem perante os seus pares ao verem este tipo de comportamentos. Quebrem esse silenciamento perante atrocidades, essa “irmandade masculina” que perpetua a violência que nos agride e nos mata.
O problema é real. E reconhecê-lo não é sobre apontar todos como agressores, nem sobre colocar homens contra mulheres. Pelo contrário, é um pedido de ajuda para que se juntem a nós na luta e façam parte da solução. Só juntas e juntos poderemos fazer a diferença.