Há algo de inexplicavelmente mágico no Sudoeste alentejano e na costa vicentina, que nos prende à paisagem, às pessoas, a uma vivência mais pura, livre e natural. Algo que nos conquista na rudeza das fragas escarpadas, na fúria das ondas quebrando os extensos areais, no suave toque da maresia na nossa face.
Em mais de duas décadas, percorri centenas de vezes a N120, a estrada que atravessa campos e povoações desde Sines até Lagos, serpenteando por entre as curvas da planície e as encostas das serras. Foi companheira de muitas aventuras de adolescência e idade adulta, o asfalto seguro ao qual regressava após inúmeros quilómetros palmilhados entre areia, terra, lama e gravilha, calcorreando em veículos todo-o-terreno os trilhos que me conduziam até ao mar.
Continuo a fazer o mesmo caminho, agora com novos companheiros de viagem, numa fase diferente da minha vida. Ao envelhecermos, alimentamos a esperança de que, por muito que o mundo mude, certos locais irão sempre conservar a pureza original de quando os conhecemos. Infelizmente, este não foi o caso da N120.
Os automóveis amontoam-se a perder de vista, largados ao desbarato, desde o pontão de S. Torpes até, quase ininterruptamente, ao estacionamento da Praia Grande. Onde dantes se respirava, sustém-se agora o fôlego.
Em ambos os sentidos da via, filas intermináveis de veraneantes estafados atropelam-se para chegar à praia, na esperança de poder estender a sua toalha nos restantes dois metros quadrados dos pequenos areais entalados nas falésias da Samouqueira.
À entrada da vila, o novo hotel ocupou um antigo terreno baldio, conquistando uma posição privilegiada, de frente para o mar. Mais à frente, passando o mercado, a muralha cerrada de vivendas descaracterizadas, todas semelhantes entre si e iguais a tantas outras que se erguem Europa fora, estende-se até à estação de serviço.
Pouco resta de calmo e pitoresco em Porto Covo. Salvam-se apenas as gralhas e, mesmo essas, quem sabe quantas mais vezes se levantarão de manhã das colinas do porto de pesca em direcção ao seu poiso no pessegueiro da Ilha.
Continuando a descer em direcção ao Algarve, sentimos de imediato a mudança na paisagem. Os campos áridos, por vezes quase desérticos, vermelhos ou amarelados pela cor da terra, e polvilhados, aqui e ali, por cilíndricos montículos de palha, foram substituídos por acinzentados túneis plásticos que se multiplicam na distância, escondendo culturas agrícolas pouco habituais neste território.
A água sempre foi pouco mais do que uma miragem, por estas paragens, suportando parcamente as suas gentes. Agora, como que por ilusionismo, os novos proprietários não parecem preocupados com a sua escassez. O espírito selvagem, único, do parque natural, desvanece-se a cada dia que passa, perdendo-se na bruma da neblina marinha, apagando os resquícios de um passado que não mais voltará.
"A Câmara emitiu novas restrições para o consumo de água. Vivi aqui a minha vida toda, e nunca vi nada assim. Qualquer dia não temos água para dar aos nossos filhos", reportava um habitante. Estará para breve o fim do Sudoeste Alentejano e da Costa Vicentina, na sua unicidade tão especial?
No extremo oposto do Alentejo, nas terras que nos acompanham em direcção à raia, o espírito alentejano parece regressar, lentamente, às aldeias e vilas do interior. Em anos recentes, o milagre da água do Alqueva revolucionou a paisagem. Onde pouco ou nada se plantava, surgem agora pomares, olivais e vinhas. Multiplica-se a produtividade, suplantando as melhores expectativas.
O amarelo deu lugar ao verde.
Por entre as sinuosas estradas da planície, cresce agora a abundância, a cor, a emoção. Aumentam os visitantes que procuram a paz, o céu estrelado, as migas e o bom vinho. Surgem novos montes e alojamentos, formas inovadoras de interpretar a alma alentejana e de manter vivas as suas tradições culturais.
Surge vida.
Será esta a "Toscana portuguesa"? Poderá este renascimento servir de inspiração a outros lugares?