As primeiras palavras do mundo

Crescer é um conceito abstrato. Amigos dos nossos pais dizem-nos o quão depressa crescemos e nós desconfiamos, ou achamos aborrecida a conversa.

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Estou agarrada a um livro, a chorar. Se alguém me visse, acharia que eu estava a ler poemas do Éluard ou uma carta de despedida de alguém querido. Mas não. O livro em questão é 1, 2 Trix! Manual de Português do 1º ano.

Crescer é um conceito abstrato. Amigos dos nossos pais dizem-nos o quão depressa crescemos e nós desconfiamos, ou achamos aborrecida a conversa. É o tipo de coisa que, no fundo, nunca se acredita bem que aconteça.

Até que há um dia em que se percebe muito bem. Esse dia provavelmente é hoje, é o que percebo ao ver que estou a deixar a página dos ditongos encharcada.

As palavras deste livro são as primeiras palavras que a minha filha vai ler, e parecem-me as mais lindas alguma vez escritas. As primeiras palavras do mundo. Anel. Alma. Leio. Pipo. Piano. Pato. Domínio. Dominó. Dado.

Vou folheando o manual e ficando inesperadamente comovida com prosas elaboradas como: “O macaco mergulha”; “A mãe põe o melão na mesa”; ou “A Gigi e o Gastão têm um foguetão”.

Sim, os macacos mergulham (mergulham?) e as mães põem melões na mesa. Mas, ao mesmo tempo, precisavam de o fazer tão cedo? E já cheios de consoantes? Não podem continuar a mergulhar lá no reino onde os macacos mergulham, longe da ortografia? E mães, calma, nem estamos na época do melão. Gigi e Gastão: felicito-vos, mas precisam de ir já? Têm assim tanta pressa? Deixem-se estar sossegados.

Mota, coração, bola, sol, teia, balão, caracol, avião. Isto não é um manual, é um mapa do futuro.

Ela vai saber que cada letra tem um som, que cada som tem um significado e que cada significado tem uma força. Por outras palavras, vai saber ler.

“O Flamingo é elegante”; “O sapo saltitão”. Mas agora a minha filha saberá que um F maiúsculo pode ser tão elegante como um flamingo. Que os sapos saltitam com três sílabas, e que muitas flores não são só um jardim, são também um plural.

“As abelhas fazem mel”; “A lua brilha à noite” e “As girafas comem folhas”. Já era assim e assim continuará a ser. A diferença é que agora as girafas já não vão precisar de mim para comer as folhas. Vão andar por aí a comer folhas sozinhas. Florestas inteiras. Pode até ser perigoso. O que será das girafas sem mim?

Para quem vou eu decifrar o mundo?

Paro numa página que pede que se preencham espaços. Preencher espaços com palavras. Poderá haver aprendizagem mais importante?

Estou aqui a tentar fazer isso. A tentar encontrar palavras que ocupem este espaço que se cria entre ela com a sua mochila enorme a ir inaugurar o mundo e eu a vê-la.

Observo-a nos treinos da caligrafia, com cuidado e hesitação, a contornar os picotados, a desenhar o cogumelo maiúsculo que é o P, e sinto um orgulho que nem sabia que era possível. Tenho esperança que continue a gostar de aprender.

E que saiba que pode sempre voltar ao lugar onde as palavras começaram.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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