Na Turquia, a crise climática não é um conceito abstrato

As falhas na produção alimentar, os protestos espontâneos, os incêndios a ameaçar grandes cidades e a crise de custo de vida (e tudo isso em simultâneo) são o apocalipse.

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É final de Agosto, estou em Esmirna. A terceira maior cidade na Turquia, onde cresci, tem quatro milhões de habitantes. Estou no barco que atravessa a baía, a ler o jornal. É de manhã, mas o céu está cinzento.

As televisões não estão a falar disso, mas milhares de agricultores na Turquia estão a organizar protestos espontâneos. Os produtores de tomate bloquearam a auto-estrada que liga Bursa a Esmirna. O preço de produção de um quilo de tomate é de 2,50 liras turcas, mas o preço que os retalhistas pagam aos produtores é de 2 liras turcas. Os agricultores dizem que colher o tomate que está no campo já custa 1,10 lira turca. Mais vale deixar no chão por colher.

Mil quilómetros a este, os produtores de alperce em Malatya e os produtores de amendoim em Gaziantep também protestaram, e em Maras os produtores de pimenta fecharam as auto-estradas. Em Manisa, a cinquenta quilómetros de onde eu estou, os agricultores de melão e melancia simplesmente distribuíram os seus produtos gratuitamente à população local. Há dezenas de distritos com protestos.

Isto é só uma notícia no jornal.

Só em 2023, os agricultores receberam 200 milhões de euros das seguradoras na Turquia. Metade desse valor pagou os danos causados por geadas, um terço por causa das cheias, e só 4% por causa da seca. Mas isto é só a ponta do icebergue em termos de danos reais, visto que só um quarto dos agricultores consegue ter um seguro.

Isto era uma outra notícia, no jornal da semana anterior.

Mas depois há uma terceira notícia. No sul, em Adana, os produtores receberam uma carta da Direcção-Geral dos Assuntos Hídricos para não plantarem cebola, batata e alface (produtos de Outono) porque não há água nas barragens disponível para irrigação. Este aviso, no final de Agosto, não altera as escolhas produtivas dos agricultores, porque as mudas já estão a crescer e, nesta altura, estão quase prontas a plantar nos campos. Mas tem um impacto importante: os agricultores deixam de poder accionar o seguro por causa da seca, dado já terem sido notificados pelo Estado da falta de água – pelo menos nominalmente, dando provas suficientes às empresas de seguros.

Estas notícias estão em páginas diferentes, sem estarem relacionadas. Depois há uma outra pequena notícia, noutra parte do jornal, sobre a crise climática e sobre os impactos do aumento da temperatura na Turquia. Assuntos separados.

O meu barco está a chegar ao cais. As pessoas à minha volta tossem muito. Quando reparo que tossem, percebo que também eu estive a tossir. Olho à minha volta. O céu está cinzento, mas não por estar coberto de nuvens. Há um incêndio nas montanhas que rodeiam a cidade, que aparentemente começou a arder de madrugada, mas só agora é que o vento virou no sentido do centro da cidade. Enquanto estou a desembarcar, vem um helicóptero para buscar água, literalmente ao meu lado.

Estou agora em Karsiyaka. Está a chover cinza. Dá para respira-la, aliás engoli-la. Entra nos meus olhos. Vou ao supermercado para comprar tomate para o pequeno-almoço. A vida continua normalmente. As pessoas tossem, e continuam a trabalhar, continuam a beber chá nas suas pausas. O tomate custa 30 liras turcas. Compro dois quilos.

Volto para a casa. Cheira a queimado. Fecho as janelas. Estão 38ºC lá fora, e em casa nem se consegue ligar o ar condicionado, porque não há electricidade. Somos um milhão de pessoas directamente afectadas.

Já sei o que quero contar-vos.

Temos uma noção do estado pós-apocalíptico. Já vimos o Mad Max e o Bladerunner 2049. Tudo destruído e abandonado, sem vida. Mas a única forma que temos de dar significado a esse estado vem dos filmes errados, como Armageddon ou Don’t Look Up, nos quais a ligação entre o hoje e o futuro em colapso acontece instantaneamente. Estamos errados. António Guterres diz que estamos numa auto-estrada para o inferno climático. Essa auto-estrada não é um percurso confortável.

Na verdade, há uma espécie de transição daqui para lá. E nós já estamos bastante encaminhados. O apocalipse (cujo “pós” nos assusta nos filmes) é este. Não é outra coisa. As falhas na produção alimentar, os protestos espontâneos, os incêndios a ameaçar grandes cidades e a crise de custo de vida (e tudo isso em simultâneo) são o apocalipse. As portas do inferno estão abertas, e já podemos ver o que está lá dentro (nos momentos em que não temos cinzas nos olhos).

A nossa casa não vai arder, ela está a arder. O colapso não está por vir, ele já está a acontecer. Aquilo sobre o qual tantos relatórios científicos nos avisaram era este colapso, que ainda temos possibilidade de travar. Será preciso uma enorme mobilização social, será preciso uma transformação total da nossa sociedade, mas ainda podemos travar o colapso em curso. Para começar, temos de deixar de normalizá-lo.

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