Augusto M. Seabra, um leitor
A sua “severidade” decorria da convicção de que a crítica de cinema é um trabalho sério e para ser levado a sério, não um passaporte para festas e festanças, muito menos um concurso de popularidade.
No final da adolescência, últimos anos dos 1980, quando comecei a prestar atenção ao cinema e aos críticos de cinema, o Augusto M. Seabra era aquele que me deixava mais intrigado. Dava sempre menos estrelas do que os outros, era habitual que a simetria de uma linha completa de cinco estrelas se quebrasse porque na sua coluna só estavam quatro, ou menos do que isso. Era habitual também que a um texto claramente positivo sobre um qualquer filme correspondessem depois apenas duas estrelas. Acho que foi a primeira coisa que aprendi com ele, sem saber que a estava a aprender: que há um pudor nisto de dar estrelas, que é menos embaraçoso, anos depois, ter recebido com tepidez um filme que até valia mais do que ter feito uma fanfarra a propósito de um objecto que o tempo mostrou que não estava à altura dela.
Isto não é anedótico – “dar estrelas” é uma parte importante do trabalho de crítico, para uma grande maioria das pessoas, desconfio, até a parte mais saliente, porque é mais fácil contá-las do que ler os textos. Aproximo-me do lugar aonde quero chegar (leitores & textos) mas, para lá chegar, ainda isto: não é anedótico porque a parcimónia dos elogios contribuía, pelo menos na minha geração, para a auréola de severidade que pairava à volta do Augusto. Era uma figura severa e intimidatória. Até ao momento em que o conhecíamos pessoalmente, e percebíamos que a “severidade” era só culto do rigor e de um sentido de honestidade intelectual, convicção de que este trabalho de crítico de cinema é um trabalho sério e para ser levado a sério, não um passaporte para festas e festanças, muito menos um concurso de popularidade – o Augusto tinha a “coragem de não ser amado”, a coragem de nem sequer ser apreciado, apaparicado, a coragem de que nem gostassem dele. É uma coragem importante, e o Augusto ensinou-a.
A intimidação também desaparecia ao primeiro contacto. O Augusto tratava os pares como pares, mesmo que fossem muito mais novos do que ele. Discordava com franqueza, até com uma certa fúria. Lembro-me, particularmente, de uma vez ter feito uma defesa de qualquer coisa incendiária que Jean-Marie Straub tinha dito num festival qualquer, e que o Augusto achava indefensável: “Você vai levar uma resposta!”. Creio que não a chegou a escrever.
Mas era isto: o Augusto lia. O Augusto lia, discutia, e sobretudo lembrava-se. De tudo. Do que tínhamos escrito na semana passada ou há dez anos, do que ele próprio ou qualquer colega tinham escrito em 1981, em 1985 ou em 1987. O Augusto lia, seguia, confrontava, e não precisava de elogiar (aprendia-se esse pudor com ele também) porque ler, seguir e confrontar é que era a forma de elogiar (o que não implicava que se fosse insensível ao elogio quando ele vinha, ganhei o dia, a semana, o mês, em certa ocasião em que ele me disparou à queima-roupa: “Que bela entrevista com o Jonas Mekas!”.
O Augusto era um leitor, para além de ser um escritor, e Deus sabe como, nos últimos anos, os leitores se tornaram um bem mais escasso do que os escritores. Processo que coincidiu com o período em que o Augusto, pelas crescentes limitações de saúde, se foi tornando raro como escritor e publicando cada vez menos. Nestes últimos anos, a presença do Augusto era uma presença de leitor. Um daqueles que elevam a fasquia – não quer dizer que escrevamos para eles, mas a noção de que eles vão ler está presente durante a redacção e faz qualquer coisa ao sentido de auto-exigência do redactor. Um leitor que se manifestava frequentemente nestes últimos anos de retiro forçado, através de telefonemas “impromptu” às vezes a meio da noite. Já quase não ia ao cinema, mas era como se continuasse a ir através dos nossos textos: “Fiquei com vontade de ver aquele filme de que vocês disseram bem mas não vou ver porque não consigo.” E queria conversar para “ver” melhor o filme para além do que tinha lido no texto. Numa altura em que se tem a sensação de se escrever para um vasto silêncio, para uma indiferença de proporções cósmicas que nas raras vezes em que é quebrada o é quase sempre por meteoritos de hostilidade, um telefonema do Augusto (até se podia se hesitar se se atendia ou não, sobretudo quando vinha depois da meia-noite) era uma alegria: pára tudo, está aqui um leitor a manifestar-se.
Ainda na semana passada, fazendo as contas ao tempo sem telefonemas do Augusto, pensei ligar-lhe. Não o fiz pelo desconforto estúpido e comodista de recear o que ia encontrar do outro lado. Não houve, portanto, nenhuma última conversa, nenhuma despedida. Mas não me perdoaria se não as deixasse aqui, a conversa e a despedida, à vista de toda a gente. Até sempre, Augusto.