O Coração Ainda Bate. Os olhos tristes
Inês Meneses e as regras de uma sociedade desumanizada.
A miúda ia com o dinheiro contado ao concerto. Num momento de entusiasmo colectivo, ela e os amigos foram comprar uma bebida. Uma lata qualquer efervescente que lhe custou o que tinha e foi tudo apostado ali. Sentou-se com os outros, longe da confusão e pousou a lata. Muito lá à frente os adultos formavam uma espécie de fogo-de-artifício em movimento contínuo. Estava ela calma a pensar se, um dia, também seria um deles.
Bruscamente, neste verão que passa, dois adultos inebriados por qualquer coisa que nunca poderemos precisar com exactidão tropeçaram na lata cheia, por beber, por contar e viver. Indiferentes, continuaram a correr para a multidão, lá à frente, como se qualquer coisa os esperasse. Talvez esperasse. Não sei. A miúda ficou com as lágrimas a rebentar na cara, enquanto a música continuava a explodir longe dali. Os amigos mobilizaram-se e foram com ela ao bar onde tinham comprado as bebidas. Explicaram à rapariga que os tinha atendido, que a lata não foi sequer bebida, que tinha ficado sem ela antes de a poder saborear.
A rapariga ouviu, percebeu, mas as regras eram regras e nada podia fazer porque não tinha acontecido ali mesmo no bar. A comiseração tem lugar marcado. Os miúdos pensaram que não. A miúda ligou à mãe a quem explicou o que tinha acabado de acontecer. Podia beber qualquer coisa mais barata desde que a mãe mandasse o dinheiro que ela já não tinha. A mãe mandou mais alguns euros. E ela comprou outra lata, outra coisa que já não era a primeira. Chorou no bar, entre a desolação e a falta de humanidade. (Talvez não soubesse ainda pôr em palavras exactas o que tinha acontecido, mas as lágrimas têm o poder de juntar muitos nomes e coisas que não queremos nomear).
A noite seguiu. Os miúdos, que já fomos, vão aprendendo a viver neste mundo cada vez mais estupidificado. Eu gostava de formar uma filha que fosse sensível à dor alheia, percebendo que há regras que se podem quebrar, que ver uma adolescente a chorar porque dois adultos lhe abalroaram a única bebida que podia comprar pode ser o momento em que mostra estar em sintonia com qualquer coisa maior a que tendo chamar humanidade. A humanidade esconde-se, encolhe-se, assusta-se. Recuamos com medo das regras.
Somos uma sociedade apavorada com que o que está estabelecido. Não percebemos que a História se faz muitas vezes quando rasgamos as convenções. Os drones, que os humanos exibem como troféus, não captam momentos de amor. São só um exercício de vaidade. Um drone podia ter captado todo este momento, que começa com a miúda a tirar os trocos do bolso e culmina com ela a chorar, desolada, com a falta de compaixão, mas isto não é coisa que se mostre. Queremos coisas em grande que se partilhem. Histórias destas são pouco apelativas, são banais. Agimos como autómatos com medo de quebrar as regras.
No momento em que vos escrevo ainda estou comovida com esta história. Queria estar lá nesse momento, correr atrás dos dois adultos que seguiram indiferentes sem se aperceber que tinham acabado de estragar a noite àquela miúda. Queria estar no bar a dizer à rapariga mais velha que a humanidade também pode estar ali, naquele lugar, que nunca é tarde para saber que as regras também se quebram, que o exemplo somos nós, cada um de nós, que o dá. Que três ou quatro moedas não estragam o negócio atrás do balcão e que facilmente tinham trazido um brilhozinho aos olhos tristes da miúda. Caramba, como gostava de ter estado ali, no meio dos miúdos, a ser a única adulta decente, mostrando que continuo a ser humana e que pratico o bem como me ensinaram.
Ainda estou comovida com isto, que, sendo tão pouco, me magoou tanto.
O coração ainda bate.