Uma despedida a ver o mar
Na vila de Aver-o-mar ainda há pescadores de adubo, sargaceiros a aproveitar o que o mar não quer. Última crónica da beira-mar, com as palavras de Luísa Dacosta por companhia
Por essa costa fora não falta quem tenha nascido em frente ao mar. Mas poucos se poderão gabar de ser de Aver-o-Mar. Com nome assim, tão directo ao assunto, e ao jeito dos que aqui habitam, esta vila da Póvoa de Varzim é, logo na toponímia, meio verso feito, a pedir poema. Aqui a praia já foi de pescadores e sargaceiras, mas hoje é outro o ritmo dos gestos. Há mais gente a ver o mar que a ir ao mar, e viver do mar rima agora com o turismo.
Não estou longe de casa. Venho pela “maresia e p’lo sargaço dos dias”, como no título de um dos livros de Luísa Dacosta (1927-2015). Venho pela casa-moinho, onde a escritora nascida em Vila Real, cidadã de Matosinhos, se refugiava nos verões, no regaço de um horizonte sem peias, para escrever. Venho à procura de homens e mulheres que bem podiam habitar os livros que ela escreveu. Porque, sendo certo que a maré mudou, ainda há quem insista em “pescar adubo”, em fazer da areia quase estéril, no campo, terra fértil, ao sabor do mar, em harmonia com a natureza.
Aver-o-Mar. Abremar, diziam os antigos. Guardo da infância, no pós-Abril, a vizinhança amiga do tio Zé e da tia Maria d’Abremar, que saíram daqui para abrir loja no sul das Caxinas, ao lado da casa dos meus avós paternos. Guardo, também, o corrupio de carroças carregadas de uma mistura de algas, o algaço, puxadas a cavalos, mulas e por um ou outro burrico a pedir festas das crianças. Bestas, na era dos automóveis, trotando pela minha rua afora, atravessando as Caxinas, a Poça da Barca, toda a Póvoa de Varzim, até aos campos meia dúzia de quilómetros para norte, que então me pareciam longe, do outro lado do meu mundo.
Em busca da língua chã
Em boa parte desses campos brotaram prédios que, chegado agora a Aver-o-Mar, num curto passeio de bicicleta, me cortam o horizonte para leste. Multiplicaram-se os apartamentos com vistas para o mar – outra forma de cumprir o nome da vila, nesta paisagem urbana difícil de ler. Por detrás deles, num puzzle de mil peças em minifúndio, estende-se, para norte, uma das mais importantes áreas de produção de hortícolas do país; preservam-se alguns campos de masseira, terrenos arenosos que, durante séculos, foram alimentados com as algas que o mar rechaça.
O Verão vai alto, e “o sargaço chegou em força à beirada”. A velhinha do moinho, como a recordam, já não está, mas ainda escuto, nas mulheres que encontro no Centro Ocupacional que o município da Póvoa abriu numa antiga escola da vila, a mesma língua chã, coloquial, que salgou os livros de Luísa Dacosta. São mulheres que cresceram na praia, inebriadas pelas mareadas de argaço, guardiãs de um saber-fazer e de palavras, como esta, argaço, perdidas para nós, mas que o galego, irmãmente, ainda preserva. E que eu repito, para nunca esquecer o linguajar dos meus antepassados.
Peço-lhes emprestado um pouco da tarde, tiro-as do convívio entre amigas em que agora, despreocupadas, esbanjam alegremente os dias. Quero que me levem ao mar, e se a névoa o esconde, neste fim de Agosto envergonhado, faço dos seus olhos uma gambiarra a romper a bruma, e das suas histórias um cortiço, jangada de ar frágil de que ainda se lembram Maria Pires Novo e o marido, Manuel Novo, a Amélia Maçães, a Ana Pires, a Rosa Neves, a Sameiro Viana, a Rosa Silva, a Fátima Simas, a Ascensão Barros, a Clemência Silva e até a Florinda Miranda, filha de um negociante de gado, nada dada a estas vidas da gente mais modesta, mas que se junta à conversa.
Memórias da escravidão
Falam aos repelões, aparentando uma saudade que não têm. “Era uma escravidão”, ouço-as dizer daquela vida na praia e nas penedias onde também iam às lapas, ao mexilhão ou às pinhas, os percebes. Se não soubesse que me falam, todas, a sua verdade, diria que Sameiro Viana lera nas crónicas de Aver-o-Mar, livro publicado em 1980 pela “poeta do moinho”, aquele episódio de quando o pai a deixou, mais a uma tia, no penedo da Forcada. Entretido noutras pedras, “nunca mais se lembrou” delas, obrigando-as, na enchente da maré, a nadar lá de fora, para terra. Tinha uns 16 anos, e desde esse dia em que se temeu levada pelo retchio das águas cruzadas, nunca mais se afoitou para lá da língua da maré. E quando casou, deixou, de vez, o mar.
Iam com os pais, os irmãos, levavam os filhos pequenos, deixados no areal, a brincar. Ao ouvi-las, recordo a minha tia-avó Adelaide do Abel, que, para ganhar para um prato de sopa, chegou a enterrar até ao pescoço um dos seus bebés, de modo a poder atirar-se às vagas sem medo de o ver gatinhar para a morte. Tudo pelo argaço que os de Aver-o-Mar ou de Aguçadoura, vindos deste lado da Póvoa onde estou, iam às Caxinas comprar nas carrocinhas.
Nenhuma das minhas interlocutoras foi tão radical. Não sei se alguma delas dormiu nos braços de Luísa Dacosta, que se afeiçoou às mães destas mulheres, “gastas a ter de parir para calar bocas famintas”. Mas sei que qualquer uma delas poderia ter sido a Elisa, que ensinou a escritora “a distinguir o sargaço gordo que serve para estercar as terras” – o rabeiro, como aqui chamam à Laminaria hyperborea – “do botelho e da francelha”.
Os sargaceiros na praia do Quião
Procurados para farmacologia e cosmética, estas e outras algas, como o cabelo de velha e o corninho, eram mais valiosas. Maria Pires Novo recorda-se de um dia a mãe ter deitado a mão a uma grande “rima de francelha”, rica em ágar, que agachara num barraco, para o vender por 500 escudos. Dinheiro com que livrou um dos filhos de ter de cumprir o serviço militar longe de casa, nos Açores. “Olha que 500 escudos, nesse tempo, era muito dinheiro”, rememora uma das amigas, ao ouvir a história.
“A praia está cheia do relinchar dos cavalos das carrocinhas, que vêm recolher o sargaço. As mulheres enrolam-no com as gravatas e os homens acamam-no, apressados, nas carrelas”. Leio e revivo. Era em Aver-o-Mar, talvez em frente ao moinho ampliado e adaptado a casa pelo arquitecto António Jacobetty, no final dos anos 50, mas podia ser em qualquer ponto desta costa do Norte de Portugal. Apúlia, em Esposende, guarda, com orgulho, esse legado, num museu recém-construído.
Hoje, na praia do Quião, o mar continua a arrojar tudo isso à praia, mas ninguém separa as algas. É tudo para o campo. Isolino Morim, 69 anos, e Abílio Ramos, de 61, vão à beirada da água buscar o argaço e espalham-no pelo areal onde a maré não chega, passando tardes de engaço na mão, em convívio com as gaivotas, os borrelhos, e uma ou outra alvéola ali atraída pelos insectos. Tratam sozinhos, com a ajuda de dois tractores, do que antes era trabalho de dezenas de pessoas e vários animais. A mulher de Abílio, Teresa Cavalheiro, vem ajudá-lo, num fim de tarde, compondo um cenário pontuado pelos cadouços de algas já secas, a aguardar pelas chuvas do Inverno, para se desfazerem na terra.
Nesta paisagem ora dourada pelo sol poente, ora esmaecida pela névoa cabem ainda meia dúzia de veraneantes e transeuntes curiosos, que dos passadiços que atravessam de Quião para Santo André, se entretêm a fotografá-los. Ao vê-los em contra-luz, não sei se são passado estes gestos que repetem, ou se – e isso espero – há futuro para estas práticas ancestrais: que nos mantêm em conexão com os ciclos da natureza; que poupam o solo aos excessos dos agroquímicos; e que, garantem eles, e as mulheres com quem conversei, dão outro sabor à batata e a tudo o que no campo lhes cresce.
Sobre o futuro, nada sei. Sei é que este cheiro a argaço ressequido conforta-me o espírito, e devolve-me, em paz, uma imagem plena, multisensorial, do ponto de partida: o mar, onde tudo começa; o mar, onde esta curta viagem pela costa, por ora, termina.
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