Num tempo em que tanto se fala de professores — aliás, da falta deles —, num tempo em que o Governo apresenta quinze medidas de um plano para combater a desvalorização da profissão, é com grande choque que ouço o silêncio deste mesmo Governo sobre a atrocidade cometida no decreto-lei n.º 23/2024.
Sou estudante do mestrado em Ensino de Português no 3.º ciclo do Ensino Básico e no Ensino Secundário. Apesar de já ter uma formação de mestrado diferente, decidi enveredar por este caminho, pura e simplesmente por paixão.
Na altura da publicação do decreto-lei n.º 80-A/2023, que legisla a habilitação própria para a docência, foi transmitido por todo o país o regresso dos estágios remunerados em ensino. Esta notícia veio a ser corroborada pelo decreto-lei n.º 112/2023, que legisla, efectivamente, os estágios remunerados nesta área.
A veiculação das notícias dos estágios remunerados fez alguns, como eu, candidatarem-se e entrarem nos mestrados em ensino, convencidos de que no ano seguinte teriam direito a remuneração e não passariam um ano a trabalhar de borla.
Ora, a 19 de Março deste ano é, então, publicado o decreto-lei n.º23/2024 que prevê um “período de transição” dos estágios não remunerados para os remunerados. As instituições de ensino superior têm autonomia, até ao ano lectivo 2026/2027, para pedirem nova acreditação por parte da Agência de Acreditação dos Cursos de Ensino Superior. Até lá, trabalhamos de graça.
Lecciono há dois anos lectivos com a chamada habilitação própria para a docência, leccionei no decorrer do primeiro ano do mestrado em ensino, conciliando duzentos quilómetros diários para trabalhar. E para o ano trabalharei de borla. Estagiarei de borla para poder obter a qualificação profissional.
Neste tempo, em que tanto se fala de professores, em que os meios de comunicação, erradamente, veiculam que “os cursos que formam professores tiveram mais procura no concurso nacional de acesso” (pasmem-se, licenciaturas não formam professores), há centenas de alunos dos mestrados em ensino que poderiam estagiar com duas turmas a seu cargo, suprindo algumas das necessidades das escolas, e sendo remunerados por isso. Em vez disso, estagiaremos de graça, sem nenhuma turma a nosso cargo, assistindo a mais aulas do que aquelas que leccionaremos, numa fase da nossa formação que não permite, praticamente, a conciliação com um trabalho.
É neste tempo que olho para o Governo, para as medidas do plano +Aulas +Sucesso, com tristeza e, principalmente, com alguma revolta. Talvez, senhor ministro, se começasse, de modo imediato, a remunerar os estágios, talvez assim chamasse mais gente para os mestrados em ensino. Talvez desse modo não houvesse pessoas a congelar matrículas nas Universidades e Politécnicos porque não podem parar de trabalhar para estagiar oito horas diárias sem receber. Talvez, senhor ministro, se olhasse mais para aqueles que cá estão e para aqueles que querem entrar, em vez de anunciar bolsas para aqueles que ainda cá não estão, talvez assim resolvesse, efectivamente, problemas.