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Onde o bicho pega
Ao concordar com os “termos da plataforma” para ter acesso a um produto ou serviço, estão ali questões para além da nossa compreensão. E, na Era Digital, certamente, o produto é você ou seus dados.
“Não li a política de uso e privacidade, não sei se concordo, mas preciso continuar”.
Desafio você a pegar o seu smartphone e contar quantos aplicativos estão instalados nele. Se considerarmos os básicos para o dia a dia, terá, no mínimo, um para verificar seu e-mail, ao menos três redes sociais, o do banco, duas ou três de mensagens instantâneas. E algum para ouvir música, outro para assistir a vídeos e até um filminho, afinal, ninguém é de ferro. Sem falar no app da sua operadora de telefone, de entrega de comida, do supermercado…
A depender do seu tipo de trabalho, o seu empregador deve ter imposto uma ferramenta, ou várias, de gestão, controle e comunicação entre os colaboradores. E ainda terá um app que monitora o seu ciclo menstrual, os batimentos cardíacos e até o choro do seu filho. Aposto que são pelo menos 20 aplicativos só para começo de conversa.
E todo mundo teve que criar uma conta em cada uma dessas plataformas, inserir dados pessoais e assinalar com um X na inofensiva caixinha: “Li e concordo com os termos de uso e privacidade”. Cá entre nós, você raramente leu antes de clicar e concordar com os “termos”. A verdade é que, diante da hiperconectvidade a que fomos submetidos inconscientemente, não temos muito tempo para ler as letrinhas miúdas com um vocabulário que nem sabemos do que se trata. E é aí que o bicho pega.
Ao concordar com os “termos da plataforma” para ter acesso a um produto ou serviço, estão ali questões para além da nossa compreensão. E, na Era Digital, se você não pagou para ter acesso a um serviço ou produto, certamente, o produto é você (ou seus dados).
Nas últimas semanas, rodou pelo mundo a notícia de uma mulher que morreu em decorrência de uma crise alérgica após jantar num restaurante do Walt Disney Resort, nos Estados Unidos. A família processou a Disney com o argumento de que a morte poderia ter sido evitada, se a empresa cumprisse os protocolos de servir apenas alimentos livres de alérgenos.
Para a surpresa de todos, a Disney afirmou que o processo teria de seguir fora do tribunal, já que o casal havia assinado a Disney+, serviço de streaming anos antes. E pasmem. Nos termos de adesão da plataforma de filmes e séries havia uma cláusula contratual em que qualquer disputa entre a empresa e o usuário estaria sujeita à arbitragem individual, ou seja, fora de tribunais.
O posicionamento do jurídico da Disney foi tão estapafúrdio, que provocou reação da imprensa, dos usuários e de especialistas, o que, obviamente, fez com que a empresa recuasse da tentativa de bloquear o processo judicial em que responde, atualmente, por homicídio culposo.
A reflexão que fica sobre este caso, no mínimo surreal, é que, se a Disney tivesse conseguido anular o processo, certamente, abriria precedente jurídico para que outras corporações fizessem o mesmo, nos casos em que o cliente viesse a travar de algum tipo de disputa judicial.
Imagina você concordar com os termos da Zara numa compra online, ir à loja física e uma prateleira cair na sua cabeça e você não ter o direito de recorrer à Justiça para ter as despesas médicas custeadas pela empresa? Só porque no dia em que você comprou aquela “brusinha” concordou com “os termos” da Zara na loja virtual? É sobre isso.
As novas tecnologias são benéficas em diversos sentidos. E sabemos disso. Mas e o outro lado? O que está nas letras miúdas, nos impactos da dependência dos dispositivos digitais e na necessidade de estarmos hiperconectados 24h por dia, executando tarefas simples. Quais são os riscos?
Lembre-se: concordar com “os termos” na pressa poderá tirar-lhe algum direito no futuro. E aceitar cookies não é sobre biscoito (ou bolacha). Mas esse tema fica para uma próxima oportunidade.